sábado, 5 de dezembro de 2015

O lado perverso da Globalização


· Manuel Cambeses Júnior*

O sociólogo francês Henri Mendras (1927-2003) batizou o termo “contra-sociedade” para referir-se a todos os integrantes de um determinado grupo social que não podem ou não querem seguir o ritmo e as exigências que este impõe. Seu expoente natural seria aquele indivíduo que por impossibilidade, ou simples falta de desejo, não consegue adaptar-se à velocidade com que se move o seu entorno social, transformando-se, consequentemente, em um verdadeiro pária dentro da sociedade a que pertence. Ou seja, um deslocado, um ser excluído, um autêntico homo sacer.

Nos dias atuais, bem poderíamos falar de uma contra-sociedade mundial. A mesma estaria composta por todos aqueles que não conseguiram assimilar o ritmo evolutivo da sociedade globalizada. O número de desadaptados pode contabilizar-se em dezenas de milhões. E mais ainda, dia-a-dia aumenta o número de pessoas que, em todas as regiões do planeta, albergam o temor e a angústia de sentirem-se excluídas das filas dos seres produtivos. São pessoas comuns que vivem atormentadas e sob a ameaça permanente da exclusão social.

Os números desta contra-sociedade têm sidos manejados com bastante frequência. Michel Rocard, ex-Primeiro Ministro da França, aponta os seguintes dados: 30% da população ativa dos Estados Unidos, ou seja, quarenta milhões de pessoas, vivem em situação de pobreza ou precariedade social, ao passo que 30% da população ativa nas três grandes regiões do mundo industrializado pode qualificar-se como desocupada ou marginalizada. Por sua parte, Jacques Chirac, ex-Presidente da França, assinala que os países que compõem a União Europeia, contam com dezoito milhões de desempregados e cinquenta milhões de cidadãos sob a ameaça de exclusão social. Os países integrantes da OCDE, o clube dos estados mais ricos do planeta, contam hoje com trinta e cinco milhões de desempregados. E o que dizer dos países em vias de desenvolvimento?

A conjunção entre um desenvolvimento técnico acelerado, sustentado na automação, associado à ausência ou abandono generalizado das normas de proteção social, estão fazendo aumentar, assustadoramente, os números de desempregados e de subempregados. O Brasil, lamentavelmente, em face de atual crise que o assola, é um bom exemplo de país que tem aumentado substancialmente sua competitividade e inserção na economia global às custas de um notável incremento das filas de desempregados.

A lógica deste perverso processo é simples. Sob o impacto de uma competição produtiva sem fronteiras e sem mesuras, em que a redução de custos transformou-se em dogma, não há espaços para  considerações sociais. Existe a tendência, por essa via, a uma nivelação por baixo, na qual a mão-de-obra mais barata, ou a substituição desta pela tecnologia, determinam a sobrevivência dos produtos no mercado. A tecnologia e a redução de custos laborais são os grandes dinamizadores do novo crescimento econômico. Como bem assinala a revista Fortune, em sua edição de abril de 1996: “Os avanços tecnológicos unidos aos implacáveis desempregos em massa, dispararam a produtividade e elevaram, consideravelmente, os ganhos da indústria”.

Frente a esta dura realidade, os países apresentam a tendência de transformarem-se em um autêntico bazar persa, competindo entre si para fazer maiores concessões ao grande capital, como via para captar inversões e garantir o crescimento econômico. O resultado desta postura é que observa-se o abandono do sentido do coletivo e do imprescindível papel do Estado em matéria de arbitragem e de observância da regulamentação social. Que outra coisa poderia fazer o Estado? Este se vê incapacitado para fazer frente ao volume e à dinâmica dos capitais privados. Os três maiores fundos de pensão estadunidenses, Fidelity Investments, Vanguard Group, Capital Research & Managements controlam em torno de quinhentos bilhões de dólares. Impotente, o Estado teve de adaptar-se às exigências do grande capital, sem poder evitar que o homem transforme-se, cada vez mais, no lobo do próprio homem.

A força emergente após o ocaso do Estado é, obviamente, o grande capital privado transnacional. Este governa a economia globalizada, passando por cima de fronteiras e atropelando governos, impondo leis à sua conveniência e promovendo uma acirrada e desumana competição entre países, a serviço de seus interesses. Prova inconteste disso, encontramos no acordo multilateral sobre inversões que está sendo negociado na Organização Mundial de Comércio, que submeteria as leis regulatórias dos países membros às objeções internacionais, restringindo a capacidade dos Estados para ditar políticas econômicas de interesse nacional. A pergunta a fazer, nesse caso, é a seguinte: que lógica domina o grande capital transnacional?  Esta se sintetiza em uma consideração fundamental: a rentabilidade imediata. A necessidade de dar resposta às exigências de curto prazo, de um gigantesco número de acionistas anônimos, tem se transformado, efetivamente, na razão de ser fundamental do processo econômico em curso. Dentro desse contexto, as grandes corporações competem ferozmente entre si para captar as preferências dos acionistas,  livrando-se de tudo aquilo que possa significar um peso na busca por maiores rendimentos.

Porém, quem é esse acionista anônimo que sustenta a engrenagem e dita as regras da economia globalizada? Este não é outro, senão o homem comum: o operário, o gerente médio, o funcionário público, o profissional liberal, a dona-de-casa. Ou seja, o mesmo homem comum que vive atormentado pelo fantasma do desemprego e com medo de vir a engrossar, com sua presença, as filas da grande contra-sociedade dos dias atuais. Através de sua cotização e na busca de máximo rendimento para as suas economias, investe em fundos de pensões e fundos mutuais ou, através de pequenas inversões de capitais, nas Bolsas de Valores. Desta maneira, paradoxalmente, ele tem se transformado em atuante protagonista deste perverso processo econômico que o atemoriza e o encurrala.

Segundo um curioso processo circular imposto por esta globalização perversa, em que vivemos na atualidade, o homem comum tem se transformado em seu próprio inimigo, erigindo-se feroz e desapiedadamente frente a si mesmo.

·    *O autor é coronel-aviador; membro emérito do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil e Conselheiro do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica.

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