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Manuel Cambeses Júnior*
O
sociólogo francês Henri Mendras (1927-2003) batizou o termo “contra-sociedade”
para referir-se a todos os integrantes de um determinado grupo social que não
podem ou não querem seguir o ritmo e as exigências que este impõe. Seu expoente
natural seria aquele indivíduo que por impossibilidade, ou simples falta de
desejo, não consegue adaptar-se à velocidade com que se move o seu entorno
social, transformando-se, consequentemente, em um verdadeiro pária dentro da
sociedade a que pertence. Ou seja, um deslocado, um ser excluído, um autêntico
homo sacer.
Nos
dias atuais, bem poderíamos falar de uma contra-sociedade mundial. A mesma
estaria composta por todos aqueles que não conseguiram assimilar o ritmo
evolutivo da sociedade globalizada. O número de desadaptados pode
contabilizar-se em dezenas de milhões. E mais ainda, dia-a-dia aumenta o número
de pessoas que, em todas as regiões do planeta, albergam o temor e a angústia
de sentirem-se excluídas das filas dos seres produtivos. São pessoas comuns que
vivem atormentadas e sob a ameaça permanente da exclusão social.
Os
números desta contra-sociedade têm sidos manejados com bastante frequência.
Michel Rocard, ex-Primeiro Ministro da França, aponta os seguintes dados: 30%
da população ativa dos Estados Unidos, ou seja, quarenta milhões de pessoas,
vivem em situação de pobreza ou precariedade social, ao passo que 30% da
população ativa nas três grandes regiões do mundo industrializado pode
qualificar-se como desocupada ou marginalizada. Por sua parte, Jacques Chirac,
ex-Presidente da França, assinala que os países que compõem a União Europeia,
contam com dezoito milhões de desempregados e cinquenta milhões de cidadãos sob
a ameaça de exclusão social. Os países integrantes da OCDE, o clube dos estados
mais ricos do planeta, contam hoje com trinta e cinco milhões de desempregados.
E o que dizer dos países em vias de desenvolvimento?
A
conjunção entre um desenvolvimento técnico acelerado, sustentado na automação,
associado à ausência ou abandono generalizado das normas de proteção social,
estão fazendo aumentar, assustadoramente, os números de desempregados e de
subempregados. O Brasil, lamentavelmente, em face de atual crise que o assola,
é um bom exemplo de país que tem aumentado substancialmente sua competitividade
e inserção na economia global às custas de um notável incremento das filas de
desempregados.
A
lógica deste perverso processo é simples. Sob o impacto de uma competição
produtiva sem fronteiras e sem mesuras, em que a redução de custos
transformou-se em dogma, não há espaços para
considerações sociais. Existe a tendência, por essa via, a uma nivelação
por baixo, na qual a mão-de-obra mais barata, ou a substituição desta pela
tecnologia, determinam a sobrevivência dos produtos no mercado. A tecnologia e
a redução de custos laborais são os grandes dinamizadores do novo crescimento
econômico. Como bem assinala a revista Fortune, em sua edição de abril de 1996:
“Os avanços tecnológicos unidos aos implacáveis desempregos em massa,
dispararam a produtividade e elevaram, consideravelmente, os ganhos da
indústria”.
Frente
a esta dura realidade, os países apresentam a tendência de transformarem-se em
um autêntico bazar persa, competindo entre si para fazer maiores concessões ao
grande capital, como via para captar inversões e garantir o crescimento
econômico. O resultado desta postura é que observa-se o abandono do sentido do
coletivo e do imprescindível papel do Estado em matéria de arbitragem e de
observância da regulamentação social. Que outra coisa poderia fazer o Estado?
Este se vê incapacitado para fazer frente ao volume e à dinâmica dos capitais
privados. Os três maiores fundos de pensão estadunidenses, Fidelity
Investments, Vanguard Group, Capital Research & Managements controlam em
torno de quinhentos bilhões de dólares. Impotente, o Estado teve de adaptar-se
às exigências do grande capital, sem poder evitar que o homem transforme-se,
cada vez mais, no lobo do próprio homem.
A
força emergente após o ocaso do Estado é, obviamente, o grande capital privado
transnacional. Este governa a economia globalizada, passando por cima de
fronteiras e atropelando governos, impondo leis à sua conveniência e promovendo
uma acirrada e desumana competição entre países, a serviço de seus interesses.
Prova inconteste disso, encontramos no acordo multilateral sobre inversões que
está sendo negociado na Organização Mundial de Comércio, que submeteria as leis
regulatórias dos países membros às objeções internacionais, restringindo a
capacidade dos Estados para ditar políticas econômicas de interesse nacional. A
pergunta a fazer, nesse caso, é a seguinte: que lógica domina o grande capital
transnacional? Esta se sintetiza em uma
consideração fundamental: a rentabilidade imediata. A necessidade de dar
resposta às exigências de curto prazo, de um gigantesco número de acionistas
anônimos, tem se transformado, efetivamente, na razão de ser fundamental do
processo econômico em curso. Dentro desse contexto, as grandes corporações
competem ferozmente entre si para captar as preferências dos acionistas, livrando-se de tudo aquilo que possa
significar um peso na busca por maiores rendimentos.
Porém,
quem é esse acionista anônimo que sustenta a engrenagem e dita as regras da
economia globalizada? Este não é outro, senão o homem comum: o operário, o
gerente médio, o funcionário público, o profissional liberal, a dona-de-casa.
Ou seja, o mesmo homem comum que vive atormentado pelo fantasma do desemprego e
com medo de vir a engrossar, com sua presença, as filas da grande
contra-sociedade dos dias atuais. Através de sua cotização e na busca de máximo
rendimento para as suas economias, investe em fundos de pensões e fundos
mutuais ou, através de pequenas inversões de capitais, nas Bolsas de Valores.
Desta maneira, paradoxalmente, ele tem se transformado em atuante protagonista
deste perverso processo econômico que o atemoriza e o encurrala.
Segundo
um curioso processo circular imposto por esta globalização perversa, em que
vivemos na atualidade, o homem comum tem se transformado em seu próprio inimigo,
erigindo-se feroz e desapiedadamente frente a si mesmo.
· *O autor é coronel-aviador; membro emérito
do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, membro da Academia de
História Militar Terrestre do Brasil e Conselheiro do Instituto Histórico-Cultural
da Aeronáutica.
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