Manuel Cambeses Júnior
Na nova realidade internacional
que emergiu após o colapso do comunismo e a débâcle da União Soviética, o
fenômeno étnico ocupa um lugar relevante. De fato, a ele corresponde uma cota
de responsabilidade muito importante na crise que hoje vive o Estado.
Muito antes que começassem a
aparecer os sintomas da enfermidade que consumia o império soviético, diversos
Estados encontravam-se desgarrados por conflitos étnicos. Entretanto, o
desmembramento comunista iniciado a partir de 1989, desatou uma efervescência do
sentido étnico que conduziu ao questionamento de inumeráveis fronteiras
estatais em vários locais do mundo.
Numerosos grupos étnicos passaram
a reclamar o direito a uma existência independente dos Estados aos quais
formaram parte durante longo tempo. Contudo, observa-se que os massacres
proliferam entre etnias obrigadas a conviver sob um mesmo teto estatal.
O exemplo dado pela reunificação
alemã, seguida pelo esfacelamento da União Soviética, colocou em marcha um
furacão político de grandes proporções. Ademais, o fato de que após o final da
Guerra Fria proclamou-se a preeminência dos organismos supranacionais e
coletivos como fundamento da nova ordem mundial muito colaborou para o
florescimento dos sentimentos de origem étnica. Isto estimulou a muitos grupos
étnicos a propugnar por uma existência independente, sem contar com o poder
aglutinador e protetor de um Estado consolidado.
Prevaleceu a impressão de que
qualquer mini-Estado, que emergisse no cenário internacional, poderia encontrar
viabilidade econômica integrando-se a um mercado comum e viabilidade política
graças ao guarda-chuvas protetor dos mecanismos de segurança coletivos.
Os Estados assentados em uma
identidade nacional sólida ficaram imunes à força das novas idéias originadas
pela queda do Muro de Berlim. Não obstante, para aqueles que possuíam uma
pluralidade de identidades étnicas, compartindo um mesmo espaço estatal, os
problemas não pararam de crescer.
A Iugoslávia foi a primeira a
sofrer o impacto dos novos tempos. Isto porque se tratava de um Estado
integrado pelos despojos de dois grandes impérios (austro-húngaro e turco) cuja
diversidade étnica a convertia em um laboratório ideal para sofrer os rigores
da nova realidade. Somente na Bósnia morreram 250 mil pessoas.
A Rússia sofreu na própria carne
os custos de desmembramento que a URSS lhe proporcionou. Na Chechênia, 30 mil
mortos são o balanço dos intentos de Moscou para evitar a secessão.
Na antiga União Soviética, os
enfretamentos da origem étnica fizeram-se sentir na Moldávia, Geórgia,
Azerbaijão, Armênia e Tadjiquistão. No Afeganistão, a retirada dos soviéticos
deixou quatro grupos étnicos enfrentando-se entre si e sustentados por países
vizinhos. Um pouco mais a Oeste, na Turquia, o embate armado da população de
origem curda prossegue de forma sangrenta.
Os Estados criados pela mão do
colonialismo, que traçava fronteiras com total desconhecimento dos grupos
étnicos subjacentes, tornaram-se particularmente vulneráveis à força
desestabilizadora deste fenômeno. A África e o mundo árabe são testemunhas
altamente ilustrativas neste sentido.
Curiosamente, com exceção do
problema curdo no Iraque, o cenário árabe encontra-se à margem da crise dos
etnicismos desatados. A razão disso, seguramente, pode encontrar-se na resposta
internacional contra o Iraque após o desconhecimento das fronteiras
kuwaitianas, por parte de Saddan Hussein.
O problema ali é outro: o
fundamentalismo, o qual tem em comum com o fenômeno étnico a busca de uma
parcela própria do universo, que permita viver de acordo com as raízes
islâmicas. Na África, ao contrário, os problemas étnicos têm proliferado
livremente.
Ruanda e Burundi constituem casos
extremos do potencial de violência que leva consigo o tema etnia. Entre 1993 e
final de 1995, mais de 100 mil pessoas morreram no Burundi como resultado dos
massacres gerados pelo ódio étnico. Em Ruanda, 800 mil pessoas feneceram depois
do assassinato do presidente da República, em abril de 1994.
Em ambos os casos, os
enfrentamentos entre os grupos Tutsi e Hutu, comuns a ambos os países, têm sido
a causa das matanças. Já se fala do desaparecimento das fronteiras artificiais
de ambos Estados, para criar uma "Tutsilândia" e uma
"Hutulândia" que permitam a integração destas etnias em dois Estados
homogêneos
Na Libéria, uma sangrenta guerra
civil enfrenta diversas facções que se assentam em grupamentos étnicos
definidos. Verifica-se que no continente africano a identidade étnica
transformou-se em fonte de constante ameaça para a subsistência dos Estados
herdados da era colonial.
Poderíamos continuar enumerando
exemplos de guerras civis e massacres no Hemisfério Sul, porém ocorre que
também no Hemisfério Norte a sobrevivência de vários Estados encontra-se
comprometida, como resultado deste mesmo fenômeno. Canadá e Bélgica são dois
exemplos particularmente representativos. No primeiro deles, a secessão de
Quebec constitui-se em fonte de permanente preocupação para os canadenses. Na
Bélgica, coração da Europa unitária, a ancestral rivalidade entre valões e
flamengos projeta-se como uma espada de Dâmocles à subsistência desse rico
Estado.
A este curioso cenário poderemos
acrescentar a problemática do fenômeno autonomista que envolve curdos,
gauleses, escoceses, bretões, corsos, catalães, bascos etc.
*(Coronel-aviador; membro emérito do Instituto
de Geografia e História Militar do Brasil, conselheiro do Instituto
Histórico-Cultural da Aeronáutica, membro da Academia de História Militar
Terrestre do Brasil e conferencista especial da Escola Superior de Guerra).
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