sexta-feira, 13 de julho de 2012

Estados, xenofobias e etnicismos

Manuel Cambeses Júnior

 
Na nova realidade internacional que emergiu após o colapso do comunismo e a débâcle da União Soviética, o fenômeno étnico ocupa um lugar relevante. De fato, a ele corresponde uma cota de responsabilidade muito importante na crise que hoje vive o Estado.
Muito antes que começassem a aparecer os sintomas da enfermidade que consumia o império soviético, diversos Estados encontravam-se desgarrados por conflitos étnicos. Entretanto, o desmembramento comunista iniciado a partir de 1989, desatou uma efervescência do sentido étnico que conduziu ao questionamento de inumeráveis fronteiras estatais em vários locais do mundo.
Numerosos grupos étnicos passaram a reclamar o direito a uma existência independente dos Estados aos quais formaram parte durante longo tempo. Contudo, observa-se que os massacres proliferam entre etnias obrigadas a conviver sob um mesmo teto estatal.
O exemplo dado pela reunificação alemã, seguida pelo esfacelamento da União Soviética, colocou em marcha um furacão político de grandes proporções. Ademais, o fato de que após o final da Guerra Fria proclamou-se a preeminência dos organismos supranacionais e coletivos como fundamento da nova ordem mundial muito colaborou para o florescimento dos sentimentos de origem étnica. Isto estimulou a muitos grupos étnicos a propugnar por uma existência independente, sem contar com o poder aglutinador e protetor de um Estado consolidado.
Prevaleceu a impressão de que qualquer mini-Estado, que emergisse no cenário internacional, poderia encontrar viabilidade econômica integrando-se a um mercado comum e viabilidade política graças ao guarda-chuvas protetor dos mecanismos de segurança coletivos.
Os Estados assentados em uma identidade nacional sólida ficaram imunes à força das novas idéias originadas pela queda do Muro de Berlim. Não obstante, para aqueles que possuíam uma pluralidade de identidades étnicas, compartindo um mesmo espaço estatal, os problemas não pararam de crescer.
A Iugoslávia foi a primeira a sofrer o impacto dos novos tempos. Isto porque se tratava de um Estado integrado pelos despojos de dois grandes impérios (austro-húngaro e turco) cuja diversidade étnica a convertia em um laboratório ideal para sofrer os rigores da nova realidade. Somente na Bósnia morreram 250 mil pessoas.
A Rússia sofreu na própria carne os custos de desmembramento que a URSS lhe proporcionou. Na Chechênia, 30 mil mortos são o balanço dos intentos de Moscou para evitar a secessão.
Na antiga União Soviética, os enfretamentos da origem étnica fizeram-se sentir na Moldávia, Geórgia, Azerbaijão, Armênia e Tadjiquistão. No Afeganistão, a retirada dos soviéticos deixou quatro grupos étnicos enfrentando-se entre si e sustentados por países vizinhos. Um pouco mais a Oeste, na Turquia, o embate armado da população de origem curda prossegue de forma sangrenta.
Os Estados criados pela mão do colonialismo, que traçava fronteiras com total desconhecimento dos grupos étnicos subjacentes, tornaram-se particularmente vulneráveis à força desestabilizadora deste fenômeno. A África e o mundo árabe são testemunhas altamente ilustrativas neste sentido.
Curiosamente, com exceção do problema curdo no Iraque, o cenário árabe encontra-se à margem da crise dos etnicismos desatados. A razão disso, seguramente, pode encontrar-se na resposta internacional contra o Iraque após o desconhecimento das fronteiras kuwaitianas, por parte de Saddan Hussein.
O problema ali é outro: o fundamentalismo, o qual tem em comum com o fenômeno étnico a busca de uma parcela própria do universo, que permita viver de acordo com as raízes islâmicas. Na África, ao contrário, os problemas étnicos têm proliferado livremente.
Ruanda e Burundi constituem casos extremos do potencial de violência que leva consigo o tema etnia. Entre 1993 e final de 1995, mais de 100 mil pessoas morreram no Burundi como resultado dos massacres gerados pelo ódio étnico. Em Ruanda, 800 mil pessoas feneceram depois do assassinato do presidente da República, em abril de 1994.
Em ambos os casos, os enfrentamentos entre os grupos Tutsi e Hutu, comuns a ambos os países, têm sido a causa das matanças. Já se fala do desaparecimento das fronteiras artificiais de ambos Estados, para criar uma "Tutsilândia" e uma "Hutulândia" que permitam a integração destas etnias em dois Estados homogêneos
Na Libéria, uma sangrenta guerra civil enfrenta diversas facções que se assentam em grupamentos étnicos definidos. Verifica-se que no continente africano a identidade étnica transformou-se em fonte de constante ameaça para a subsistência dos Estados herdados da era colonial.
Poderíamos continuar enumerando exemplos de guerras civis e massacres no Hemisfério Sul, porém ocorre que também no Hemisfério Norte a sobrevivência de vários Estados encontra-se comprometida, como resultado deste mesmo fenômeno. Canadá e Bélgica são dois exemplos particularmente representativos. No primeiro deles, a secessão de Quebec constitui-se em fonte de permanente preocupação para os canadenses. Na Bélgica, coração da Europa unitária, a ancestral rivalidade entre valões e flamengos projeta-se como uma espada de Dâmocles à subsistência desse rico Estado.
A este curioso cenário poderemos acrescentar a problemática do fenômeno autonomista que envolve curdos, gauleses, escoceses, bretões, corsos, catalães, bascos etc.
*(Coronel-aviador; membro emérito do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, conselheiro do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica, membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil e conferencista especial da Escola Superior de Guerra).




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