quinta-feira, 17 de julho de 2014

"Caiçaras","Curibocas" e o Caráter Nacional


Motivado por um ensaio que estou elaborando sobre o Caráter Nacional, tema até hoje mal resolvido no Brasil, estou pesquisando há quatro anos as características marcantes dos caiçaras - habitantes nativos do litoral- e dos curibocas - habitantes nativos do interior mediterrâneo.
 
Caráter Nacional é um tema, a um só tempo, fascinante e polêmico. Neste aspecto, há quem não reconheça que exista um “caráter nacional", na medida em que caráter é uma qualidade (virtude?) com certa rigidez ética imutável.
Os homens que assim pensam reconhecem uma "cultura nacional", que, como tal (cultura), “compreende um processo social evolutivo, um processo educacional ancorado em vivências, experiências e conhecimentos em continuada evolução e respeito aos princípios éticos maiores que garantem civilização como processo de progresso e cultura sociais.”
Caiçara é o termo que designa os habitantes dos litorais do Sul e Sudeste, com exceção de Santos, em São Paulo, e do oeste do Estado do Rio de Janeiro. Inicialmente, é resultado da miscigenação entre brancos portugueses e índios, no período de colonização do Brasil, quando ainda recebeu o aporte de negros que se afastaram das áreas urbanas.
 
Curiboca é o termo antigo que designa os descendentes de brancos com índios, mulatos e mamelucos habitantes do interior paulista e que desbravaram os sertões do Brasil inteiro, dando origem ao sertanejo  atual de várias regiões brasileiras.
Tanto caiçaras quanto curibocas apresentam em comum pequenas diferenças físicas e psicológicas em função de terem nascido na cidade ou no interior, observando-se que o interior do curiboca é terra de múltiplas atividades, enquanto o interior do caiçara é terra de atividades agropastoris, praia, de atividades pesqueiras, e ilhas, algumas quase que isoladas da civilização. O curiboca é menos sujeito às variações climáticas e ambientais.
Pode-se afirmar que há uma cultura caiçara litorânea arraigada de São Paulo ao Rio de Grande do Sul, facilmente constatável através dos festivais de culinária e música, das feiras de artesanatos e das festas populares.
O mesmo ocorre em relação aos curibocas, bastando observar os calendários de festas e eventos típicos do interior dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina e  parte do Rio Grande do Sul.
Meu padrão de análise não é propriamente a composição étnica, mas, sim, a situação desses dois tipos brasileiros dentro da tropicalidade brasileira, comparada com a condição dos habitantes de outros países tropicais.  Penso que a utilização desse padrão é mais condizente com a globalização.
 
A literatura do indianismo romântico, que teve em Iracema (1865), de José de Alencar, o apogeu do projeto das elites do império em busca da definição do Caráter Nacional pelo incentivo ao mito do Brasil como união pacífica de raças, apresenta - se hoje como movimento meramente espectral, diante da concretude hodierna desses dois tipos brasileiros, o “caiçara” e o “curiboca”, ambos resgatando a presença do negro, recalcada pelo escritor cearense, na formação brasileira.
 
Alencar construiu a índia Iracema (anagrama da natureza virginal do Novo Mundo- América) submissa ao português Martim (alegoria ao deus romano Marte), e o filho de ambos, Moacir (o primeiro brasileiro miscigenado), obcecado pelo “nacionalismo sincrético”, como observa Ana Cláudia Aymoré Martins (Universidade Federal de Alagoas - “Não há pecado ao sul do Equador: histórias de amor construindo o Brasil”).
Antes de observar esses dois tipos brasileiros, procurei averiguar se eles, como brasileiros, se distinguiriam de alguma maneira especial dos demais habitantes dos trópicos (regiões situadas às latitudes 27º, 23’ Norte e Sul (Trópicos de Capricórnio e de Câncer), abrangendo mundialmente cerca de 100 países.
Constatei que tais populações são muito diferentes, por razões étnicas, ambientais, culturais, religiosas, etc., mas todos vivem uma realidade comum aos trópicos – a pobreza ou “overall poverty”,decorrente da desigualdade na distribuição de renda.
Dos 50 países com menor PIB do mundo, todos são tropicais, como o são os países com renda per capita inferior a US$ 2,5 mil por ano. Com uma ou outra exceção, como o Afeganistão, são tropicais também os países em que pelo menos 50% da população estão abaixo da linha da miséria, e os países em que 60% a 80% dos habitantes vivem com menos de US$ 1 por dia, segundo a ONU.
E quais são as condições atuais de vida dos caiçaras e curibocas?Adoto duas variáveis de análise: A saúde e os meios de subsistência das mulheres caiçara e curiboca, como matrizes genéticas de indivíduos de ambos os sexos, pois há uma semelhança física e interação cultural admirável entre homem e mulher. Ambos apresentam poucos contrastes além das diferenças sexuais biológicas.
Paulo Prado definiu o Brasil como “Terra de todos os vícios e de todos os crimes” (1972), um alongamento da imagem que o europeu (holandês) tinha dos habitantes do Brasil colonial – brancos, negros e mestiços- como dotados de langor, sensualidade, luxúria e corrupção, no bojo do projeto português, coonestado pela Igreja, de povoamento do Brasil
Começando pela saúde física, a decantada beleza da mulher brasileira encontra singular expressão nas mulheres nativas do litoral dos estados de São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Rio de Janeiro (excluído o litoral da capital), pertencentes às comunidades de pescadores artesanais e descendentes da mistura de índios, brancos portugueses e negros africanos, na fase inicial de colonização do Brasil.

A mistura de raças ou mestiçagem torna o Brasil um país de experiência única na língua latina, em dueto com a experiência anglófila dos Estados Unidos. Mas, as mulatas brasileiras, desde Sargentelli, conquistaram fama e consolidaram o prestígio da mestiça no mundo inteiro, tornando-se símbolos sexuais, contrariando o que dizia Euclides da Cunha: “Não há um tipo antropológico brasileiro” (“Os Sertões”, 1866-1909).

O primeiro filme longa-metragem brasileiro, um drama produzido por Alberto Cavalcanti, nos estúdios da Vera Cruz, em 1950, foi “Caiçara”, dirigido por Adolfo Celi e estrelado por Eliane Lage, no papel de Marina. Foi considerado o melhor filme sul-americano no Festival de Punta Del Este, em 1951. Ele reproduzia a tipicidade cultural dessa mestiçagem litorânea.
Binde ” (“vinde ver”, no dialeto caiçara) é o convite que se estende aos milhares de turistas que buscam as praias desses estados. Fixo-me na caiçara da beira-mar, que faz parte de um substrato cultural diferente daquele a que pertence a caiçara urbana. Entre o mar e o rochedo, como o marisco, ela luta pela sobrevivência contra as forças da natureza, enrijecendo-se nas formas de pensar, sentir e agir.
O turista disposto a fazer descobertas pode, com máquina fotográfica e filmadora em punho, encostar-se à vila de pescadores, em qualquer praia, e produzir sua antropologia imagética a partir de mulher de média estatura, olhos ligeiramente amendoados e sorrateiros, cabelos negros lisos, lábios grossos, pele amorenada e corpo esbelto à custa de uma dieta de poucas calorias, à base de peixe, cereais e frutas, e tarefas árduas.
A caiçara da beira-mar não tem a beleza típica estilizada da caiçara nascida e criada na zona urbana, mas apresenta tons acentuados da dissimulação indígena, da sagacidade portuguesa e do langor sensual africano. Para o homem desavisado, pode significar, conforme a origem da expressão “caiçara”, uma armadilha de apanhar peixe de todo tamanho.
A robustez para o trabalho (doméstico, pesca e artesanato) não ofusca seu talento criativo, sua paixão pelos fandangos (“forró” é o principal) e sua vaidade nas cores fortes da maquilagem e nos adereços de bijuterias, muitas confeccionadas com conchas e produtos do mar. Com trejeitos suaves e fala mansa, comunica-se retraidamente. Pensa com rapidez e age sem pressa, transmitindo ao observador a sensação de que está diante de uma esfinge (“Decifra-me, ou te devoro!”).
No interior desses estados, a mulher curiboca contrasta totalmente da mulher das capitais, com seu rudimentar instinto de bandeirante. É submissa ao homem e ao mesmo tempo resoluta nas suas pretensões, dedicando-se ao trabalho doméstico e aos afazeres externos com singular energia física. Prefere o insulamento familiar à exposição pública e apresenta temperamento retraído e ensimesmado.
Esse apego à instituição familiar destaca o interior de São Paulo das demais regiões brasileiras e de outros países, pois apresenta uma das maiores taxas de uniões formais e legalizadas desde o período colonial, conforme informação que colhi em alguns cartórios.
Com as imigrações, a partir da década de 1930, o interior paulista recebeu muitos italianos e japoneses, os primeiros integrando-se rapidamente com brasileiros por meio dos casamentos e os segundos constituindo colônias rurais.
A “elite” curiboca tem a sua história, que, de certa forma, moldou os costumes do povo na região. Inicialmente com núcleo escravocrata, adaptou-se, após a abolição, ao aporte de novas mentalidades produtivas e ao estilo de capitalismo agrário sustentado na mecanização agrícola, no latifúndio e na agroindústria.
“O avanço das fronteiras paulistas em direção ao interior em busca de novas terras possibilitou a uma pequena elite tornar-se rica e poderosa. Ao se deslocar para abrir novas fronteiras, as famílias das elites acumulavam poder econômico, social e políticos nas regiões desbravadas”, segundo observa Maria Alice Setubal em “Famílias paulistas, famílias plurais”.
Ainda hoje, na extensão de Campinas até Ribeirão Preto e terras do Triângulo Mineiro, se encontram essas lideranças tradicionais de portugueses, italianos e japoneses, detentoras do poder político e proprietárias de vastas extensões da terra mais cara do País, ao longo da Via Anhanguera.
Terras onde se plantam a cana-de-açúcar e frutíferas, como a laranja e a manga, processadas em centenas de usinas instaladas na região e escoadas para o consumo interno e exportação. Os japoneses, especificamente, se consolidaram na produção hortifrutigranjeira. Assim, as famílias de trabalhadores perderam espaço no campo, mas ganharam emprego nas centenas de indústrias da região.
A mulher  comum curiboca é pouco afeita ao preparo intelectual, muito conservadora em seus hábitos, religiosa, cultivadora das tradições e apresenta disposição permanente para o trabalho, o lazer, o entretenimento e o jogo amoroso. Dá pouco valor à estética corporal ditada pela moda das grandes cidades e se alimenta sem sentimento de culpa, sem preocupação com a robustez e o porte físico avantajado.
Essa mulher tem forte sentimento nativista, não gosta de forasteiros e prefere participar de festejos em companhia de seus familiares e amigos, principalmente em bailes sertanejos, bares e ambientes populares, motivando-se pouco a boates e clubes sociais. Cria e cultiva seu próprio mundo, excludente do cosmopolitismo e da excessiva modernidade
Não é por acaso que a denominada “música sertaneja” se consolidou em todo o interior brasileiro, ampliando a influência original da “música caipira”, de raízes paulistas, simbolizada em figuras como “Cascatinha e Inhana”, “Tonico e Tinoco”, “Jararaca e Ratinho”, “Cacique e Pajé”. A literatura e as artes clássicas exercem pouco fascínio sobre essa gente, pois os elementos europeu e asiático oriundos dos imigrantes são rudes.
 
Curiboca é pragmática na escolha do parceiro amoroso e muito exigente quanto à condição material do mesmo, deixando aflorar o instinto de ambição pela segurança da prole. Não há preocupações estéticas e morais nessa escolha, bastando que o homem tenha boas condições financeiras. Com espora, bridão e rudeza, o galanteador será bem recebido pela bela donzela da mais tradicional família, desde que tenha posses.
Os trópicos brasileiros, de modo especial, são grandes produtores de alimentos e dotados de abundantes recursos naturais, entre os quais água, florestas, espaços para atividades agropecuárias e pesqueiras, riquezas no subsolo e no mar (minérios e petróleo), tanto que permitem a seus habitantes condições de trabalho e subsistência em padrões muito acima daqueles apresentados pela maioria dos países tropicais.
Em suma, eis a razão da liderança política e econômica do Estado de São Paulo - epicentro da colonização - dentro da federação brasileira e da sua denominação como “locomotiva do Brasil”: Ele gerou e mantem os caiçaras no seu litoral e os curibocas no interior – sínteses da miscigenação entre o branco, o preto e o índio e resposta contundente às doutrinas racistas e ambientalistas européias, que, no passado, colocavam em dúvida o futuro civilizatório do Brasil. Uma resposta também a Euclides da Cunha, que cometeu equívoco exaltando o sertanejo e desqualificando o caiçara.
Foram os caiçaras e curibocas que compuseram os contingentes brasileiros que lutaram para a expulsão dos holandeses do Nordeste, no célebre episódio da Batalha dos Guararapes (1645-1654), “o berço da nacionalidade brasileira”, exaltação da brasilidade.
Se o futebol e volibol (esportes coletivos) e o carnaval são manifestações populares que identificam o País no mundo inteiro, isso se deve à participação marcante dos caiçaras e curibocas, que sustentam clubes de futebol capazes de promover certames milionários e abastecer o mercado brasileiro de jogadores. O interior e o litoral sul/sudeste são celeiros de jogadores.
Um caso típico de caiçara é o “Mané” de Florianópolis, que recebeu forte influência dos açoreanos que migraram para a ilha. Hoje, a expressão, que era pejorativa (significava mais ou menos “Zé ninguém”), se transformou em motivo de orgulho para quem é nativo de Florianópolis e arredores. O tenista Gustavo Kuerten, campeão mundial, reside na ilha e se proclama para o mundo inteiro como “manezinho da ilha”.
Os índices sócio-econômicos das populações caiçara e curiboca, dentro do mosaico demográfico brasileiro, servem de referência para todo o Brasil e, por extensão, aos trópicos do mundo inteiro, e permitem a conclusão de que esses dois tipos brasileiros,de forma idiossincrática, como povo e elite, definem o Caráter Nacional brasileiro para o mundo globalizado, com as seguintes características: Telúrico, Moralista, Religioso, Supersticioso, Patriótico, Lascivo, Introspectivo, Lúdico, Musicalista, Nativista, Ambicioso,  Coletivista, Mercantilista, Autoritário e  Empreendedor.
Um caráter múltiplo e até com certas ambiguidades, mas que, ao ter essas características confrontadas com a tipologia de inteligências de Howard Gardner, carece de inteligência corporal e de inteligência linguística.
Talvez nesses dois casos pudéssemos recorrer aos fenômenos da química, onde certas reações entre os elementos só se tornam possíveis em determinadas condições de temperatura, luz e pressão, ou com a presença de catalisadores especiais. O Brasil não tem ginastas e artistas circenses em abundância e com a qualidade dos orientais e eslavos e o talento manual dos europeus (alemães, suíços, suecos e ingleses, etc.) e estadunidenses no artesanato industrial, e tampouco a vocação poliglota.
Mas, quem, em sã consciência, seria capaz de dizer que as expressões corporais para o samba, a dança em geral, o futebol e outros esportes coletivos não seriam atributos genuínos de uma inteligência corporal dos brasileiros?
E quem ousaria negar a existência de certa razão pura de inteligência linguística, que conseguiu manter a unidade linguística, cultural e política do Brasil intacta em torno do idioma português, apesar da influência tribal africana e nativista indígena, além do aporte dos idiomas dos múltiplos imigrantes?
Se a Grécia gerava o homem guerreiro espartano pela técnica e força física e o ateniense pela força intelectual e política, como podemos encontrar na formidável combinação desses dois tipos encarnados por Leônidas e Temístocles, na famosa guerra das Termópilas (480 A.C) contra o exército persa de Xerxes, o Brasil teve a combinação étnica do português, negro e índio (caiçaras e curibocas) na solução eficaz dos embates contra o estrangeiro para manutenção e ampliação de suas fronteiras territoriais, antes mesmo do aporte étnico dos demais imigrantes. Eles compuseram a bandeira que Raposo Tavares levou de São Paulo ao Oceano Pacífico, transpondo países vizinhos platinos e andinos, uma jornada heróica que poucos povos americanos empreenderam.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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