Motivado por um ensaio que estou elaborando sobre
o Caráter Nacional, tema até hoje mal resolvido no Brasil, estou pesquisando
há quatro anos as características marcantes dos caiçaras - habitantes nativos
do litoral- e dos curibocas - habitantes nativos do interior mediterrâneo.
Caráter Nacional é um tema, a um só tempo,
fascinante e polêmico. Neste aspecto, há quem não reconheça que exista um
“caráter nacional", na medida em que caráter é uma qualidade (virtude?)
com certa rigidez ética imutável.
Os homens que assim pensam reconhecem uma "cultura nacional",
que, como tal (cultura), “compreende um processo social evolutivo, um processo
educacional ancorado em vivências, experiências e conhecimentos em continuada
evolução e respeito aos princípios éticos maiores que garantem civilização como
processo de progresso e cultura sociais.”
Caiçara é o termo que designa os habitantes dos
litorais do Sul e Sudeste, com exceção de Santos, em São Paulo, e do oeste do
Estado do Rio de Janeiro. Inicialmente, é resultado da miscigenação entre
brancos portugueses e índios, no período de colonização do Brasil, quando ainda
recebeu o aporte de negros que se afastaram das áreas urbanas.
Curiboca é o termo antigo que designa os
descendentes de brancos com índios, mulatos e mamelucos habitantes do interior
paulista e que desbravaram os sertões do Brasil inteiro, dando origem ao
sertanejo atual de várias regiões
brasileiras.
Tanto caiçaras quanto curibocas apresentam em
comum pequenas diferenças físicas e psicológicas em função de terem nascido na
cidade ou no interior, observando-se que o interior do curiboca é terra de
múltiplas atividades, enquanto o interior do caiçara é terra de atividades
agropastoris, praia, de atividades pesqueiras, e ilhas, algumas quase que
isoladas da civilização. O curiboca é menos sujeito às variações climáticas e
ambientais.
Pode-se afirmar que há uma cultura caiçara
litorânea arraigada de São Paulo ao Rio de Grande do Sul, facilmente
constatável através dos festivais de culinária e música, das feiras de
artesanatos e das festas populares.
O mesmo ocorre em relação aos curibocas, bastando
observar os calendários de festas e eventos típicos do interior dos Estados de
São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina e parte do Rio Grande do Sul.
Meu padrão de análise não é propriamente a composição
étnica, mas, sim, a situação desses dois tipos brasileiros dentro da
tropicalidade brasileira, comparada com a condição dos habitantes de outros
países tropicais. Penso que a utilização
desse padrão é mais condizente com a globalização.
A literatura
do indianismo romântico, que teve em Iracema (1865), de José de Alencar, o
apogeu do projeto das elites do império em busca da definição do Caráter Nacional
pelo incentivo ao mito do Brasil como união pacífica de raças, apresenta - se
hoje como movimento meramente espectral, diante da concretude hodierna desses
dois tipos brasileiros, o “caiçara” e o “curiboca”, ambos resgatando a presença
do negro, recalcada pelo escritor cearense, na formação brasileira.
Alencar construiu a índia Iracema (anagrama da
natureza virginal do Novo Mundo- América) submissa ao português Martim
(alegoria ao deus romano Marte), e o filho de ambos, Moacir (o primeiro
brasileiro miscigenado), obcecado pelo “nacionalismo sincrético”, como observa Ana
Cláudia Aymoré Martins (Universidade Federal de Alagoas - “Não há pecado ao sul do Equador: histórias de amor construindo o
Brasil”).
Antes de observar esses dois tipos brasileiros,
procurei averiguar se eles, como brasileiros, se distinguiriam de alguma maneira
especial dos demais habitantes dos trópicos (regiões situadas às latitudes 27º,
23’ Norte e Sul (Trópicos de Capricórnio e de Câncer), abrangendo mundialmente cerca
de 100 países.
Constatei
que tais populações são muito diferentes, por razões étnicas, ambientais,
culturais, religiosas, etc., mas todos vivem uma realidade comum aos trópicos –
a pobreza ou “overall poverty”,decorrente da desigualdade na distribuição de
renda.
Dos 50 países com menor PIB do mundo, todos são
tropicais, como o são os países com renda per
capita inferior a US$ 2,5 mil
por ano. Com uma ou outra exceção, como o Afeganistão, são tropicais também os
países em que pelo menos 50% da população estão abaixo da linha da miséria, e
os países em que 60% a 80% dos habitantes vivem com menos de US$ 1 por dia,
segundo a ONU.
E quais são as condições atuais de vida dos
caiçaras e curibocas?Adoto duas variáveis de análise: A saúde e os meios de
subsistência das mulheres caiçara e curiboca, como matrizes genéticas de
indivíduos de ambos os sexos, pois há uma semelhança física e interação
cultural admirável entre homem e mulher. Ambos apresentam poucos contrastes
além das diferenças sexuais biológicas.
Paulo Prado
definiu o Brasil como “Terra de todos os vícios e de todos os crimes” (1972),
um alongamento da imagem que o europeu (holandês) tinha dos habitantes do
Brasil colonial – brancos, negros e mestiços- como dotados de langor,
sensualidade, luxúria e corrupção, no bojo do projeto português, coonestado
pela Igreja, de povoamento do Brasil
Começando pela saúde física, a decantada beleza
da mulher brasileira encontra singular expressão nas mulheres nativas do
litoral dos estados de São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Rio de Janeiro (excluído
o litoral da capital), pertencentes às comunidades de pescadores artesanais e
descendentes da mistura de índios, brancos portugueses e negros africanos, na
fase inicial de colonização do Brasil.
A mistura de raças ou mestiçagem torna o Brasil um país de experiência única na língua latina, em dueto com a experiência anglófila dos Estados Unidos. Mas, as mulatas brasileiras, desde Sargentelli, conquistaram fama e consolidaram o prestígio da mestiça no mundo inteiro, tornando-se símbolos sexuais, contrariando o que dizia Euclides da Cunha: “Não há um tipo antropológico brasileiro” (“Os Sertões”, 1866-1909).
O primeiro filme longa-metragem brasileiro, um drama produzido por Alberto Cavalcanti, nos estúdios da Vera Cruz, em 1950, foi “Caiçara”, dirigido por Adolfo Celi e estrelado por Eliane Lage, no papel de Marina. Foi considerado o melhor filme sul-americano no Festival de Punta Del Este, em 1951. Ele reproduzia a tipicidade cultural dessa mestiçagem litorânea.
“Binde bê” (“vinde ver”, no dialeto caiçara) é o convite que se estende
aos milhares de turistas que buscam as praias desses estados. Fixo-me na caiçara da beira-mar, que faz parte de um
substrato cultural diferente daquele a que pertence a caiçara urbana. Entre o
mar e o rochedo, como o marisco, ela luta pela sobrevivência contra as forças
da natureza, enrijecendo-se nas formas de pensar, sentir e agir.
O
turista disposto a fazer descobertas pode, com máquina fotográfica e filmadora
em punho, encostar-se à vila de pescadores, em qualquer praia, e produzir sua
antropologia imagética a partir de mulher de média estatura, olhos ligeiramente
amendoados e sorrateiros, cabelos negros lisos, lábios grossos, pele amorenada
e corpo esbelto à custa de uma dieta de poucas calorias, à base de peixe,
cereais e frutas, e tarefas árduas.
A
caiçara da beira-mar não tem a beleza típica estilizada da caiçara nascida e
criada na zona urbana, mas apresenta tons acentuados da dissimulação indígena,
da sagacidade portuguesa e do langor sensual africano. Para o homem desavisado,
pode significar, conforme a origem da expressão “caiçara”, uma armadilha de
apanhar peixe de todo tamanho.
A
robustez para o trabalho (doméstico, pesca e artesanato) não ofusca seu talento
criativo, sua paixão pelos fandangos (“forró” é o principal) e sua vaidade nas
cores fortes da maquilagem e nos adereços de bijuterias, muitas confeccionadas
com conchas e produtos do mar. Com trejeitos suaves e fala mansa, comunica-se
retraidamente. Pensa com rapidez e age sem pressa, transmitindo ao observador a
sensação de que está diante de uma esfinge (“Decifra-me, ou te devoro!”).
No interior desses estados, a mulher curiboca
contrasta totalmente da mulher das capitais, com seu rudimentar instinto de
bandeirante. É submissa ao homem e ao mesmo tempo resoluta nas suas pretensões,
dedicando-se ao trabalho doméstico e aos afazeres externos com singular energia
física. Prefere o insulamento familiar à exposição pública e apresenta
temperamento retraído e ensimesmado.
Esse apego à instituição familiar destaca o
interior de São Paulo das demais regiões brasileiras e de outros países, pois
apresenta uma das maiores taxas de uniões formais e legalizadas desde o período
colonial, conforme informação que colhi em alguns cartórios.
Com as imigrações, a partir da década de 1930, o
interior paulista recebeu muitos italianos e japoneses, os primeiros
integrando-se rapidamente com brasileiros por meio dos casamentos e os segundos
constituindo colônias rurais.
A “elite” curiboca tem a sua história, que, de
certa forma, moldou os costumes do povo na região. Inicialmente com núcleo
escravocrata, adaptou-se, após a abolição, ao aporte de novas mentalidades
produtivas e ao estilo de capitalismo agrário sustentado na mecanização agrícola,
no latifúndio e na agroindústria.
“O avanço das fronteiras paulistas em direção ao
interior em busca de novas terras possibilitou a uma pequena elite tornar-se
rica e poderosa. Ao se deslocar para abrir novas fronteiras, as famílias das
elites acumulavam poder econômico, social e políticos nas regiões desbravadas”,
segundo observa Maria Alice Setubal em “Famílias
paulistas, famílias plurais”.
Ainda hoje, na extensão de Campinas até Ribeirão
Preto e terras do Triângulo Mineiro, se encontram essas lideranças tradicionais
de portugueses, italianos e japoneses, detentoras do poder político e
proprietárias de vastas extensões da terra mais cara do País, ao longo da Via
Anhanguera.
Terras onde se plantam a cana-de-açúcar e frutíferas,
como a laranja e a manga, processadas em centenas de usinas instaladas na
região e escoadas para o consumo interno e exportação. Os japoneses,
especificamente, se consolidaram na produção hortifrutigranjeira. Assim, as
famílias de trabalhadores perderam espaço no campo, mas ganharam emprego nas
centenas de indústrias da região.
A mulher comum curiboca é pouco afeita ao preparo
intelectual, muito conservadora em seus hábitos, religiosa, cultivadora das
tradições e apresenta disposição permanente para o trabalho, o lazer, o entretenimento
e o jogo amoroso. Dá pouco valor à estética corporal ditada pela moda das
grandes cidades e se alimenta sem sentimento de culpa, sem preocupação com a
robustez e o porte físico avantajado.
Essa
mulher tem forte sentimento nativista, não gosta de forasteiros e prefere
participar de festejos em companhia de seus familiares e amigos, principalmente
em bailes sertanejos, bares e ambientes populares, motivando-se pouco a boates
e clubes sociais. Cria e cultiva seu próprio mundo, excludente do
cosmopolitismo e da excessiva modernidade
Não é por acaso que a denominada “música
sertaneja” se consolidou em todo o interior brasileiro, ampliando a influência
original da “música caipira”, de raízes paulistas, simbolizada em figuras como
“Cascatinha e Inhana”, “Tonico e Tinoco”, “Jararaca e Ratinho”, “Cacique e
Pajé”. A literatura e as artes clássicas exercem pouco fascínio sobre essa
gente, pois os elementos europeu e asiático oriundos dos imigrantes são rudes.
Curiboca é
pragmática na escolha do parceiro amoroso e muito exigente quanto à condição
material do mesmo, deixando aflorar o instinto de ambição pela segurança da
prole. Não há preocupações estéticas e morais nessa escolha, bastando que o
homem tenha boas condições financeiras. Com espora, bridão e rudeza, o galanteador
será bem recebido pela bela donzela da mais tradicional família, desde que
tenha posses.
Os trópicos brasileiros, de modo especial, são
grandes produtores de alimentos e dotados de abundantes recursos naturais,
entre os quais água, florestas, espaços para atividades agropecuárias e
pesqueiras, riquezas no subsolo e no mar (minérios e petróleo), tanto que
permitem a seus habitantes condições de trabalho e subsistência em padrões
muito acima daqueles apresentados pela maioria dos países tropicais.
Em suma,
eis a razão da liderança política e econômica do Estado de São Paulo -
epicentro da colonização - dentro da federação brasileira e da sua denominação
como “locomotiva do Brasil”: Ele gerou e mantem os caiçaras no seu litoral e os
curibocas no interior – sínteses da miscigenação entre o branco, o preto e o
índio e resposta contundente às doutrinas racistas e ambientalistas européias,
que, no passado, colocavam em dúvida o futuro civilizatório do Brasil. Uma
resposta também a Euclides da Cunha, que cometeu equívoco exaltando o sertanejo
e desqualificando o caiçara.
Foram os caiçaras e curibocas que compuseram os
contingentes brasileiros que lutaram para a expulsão dos holandeses do
Nordeste, no célebre episódio da Batalha dos Guararapes (1645-1654), “o berço
da nacionalidade brasileira”, exaltação da brasilidade.
Se o futebol e volibol (esportes coletivos) e o
carnaval são manifestações populares que identificam o País no mundo inteiro,
isso se deve à participação marcante dos caiçaras e curibocas, que sustentam
clubes de futebol capazes de promover certames milionários e abastecer o
mercado brasileiro de jogadores. O interior e o litoral sul/sudeste são
celeiros de jogadores.
Um caso típico de caiçara é o “Mané” de
Florianópolis, que recebeu forte influência dos açoreanos que migraram para a
ilha. Hoje, a expressão, que era pejorativa (significava mais ou menos “Zé
ninguém”), se transformou em motivo de orgulho para quem é nativo de
Florianópolis e arredores. O tenista Gustavo Kuerten, campeão mundial, reside
na ilha e se proclama para o mundo inteiro como “manezinho da ilha”.
Os índices
sócio-econômicos das populações caiçara e curiboca, dentro do mosaico
demográfico brasileiro, servem de referência para todo o Brasil e, por
extensão, aos trópicos do mundo inteiro, e permitem a conclusão de que esses
dois tipos brasileiros,de forma idiossincrática, como povo e elite, definem o
Caráter Nacional brasileiro para o mundo globalizado, com as seguintes
características: Telúrico, Moralista,
Religioso, Supersticioso, Patriótico, Lascivo, Introspectivo, Lúdico,
Musicalista, Nativista, Ambicioso, Coletivista,
Mercantilista, Autoritário e Empreendedor.
Um caráter múltiplo e até com certas ambiguidades,
mas que, ao ter essas características confrontadas com a tipologia de
inteligências de Howard Gardner, carece de inteligência corporal e de
inteligência linguística.
Talvez nesses dois casos pudéssemos recorrer aos
fenômenos da química, onde certas reações entre os elementos só se tornam
possíveis em determinadas condições de temperatura, luz e pressão, ou com a
presença de catalisadores especiais. O Brasil não tem ginastas e artistas
circenses em abundância e com a qualidade dos orientais e eslavos e o talento
manual dos europeus (alemães, suíços, suecos e ingleses, etc.) e estadunidenses
no artesanato industrial, e tampouco a vocação poliglota.
Mas, quem, em sã consciência, seria capaz de
dizer que as expressões corporais para o samba, a dança em geral, o futebol e
outros esportes coletivos não seriam atributos genuínos de uma inteligência
corporal dos brasileiros?
E quem
ousaria negar a existência de certa razão pura de inteligência linguística, que
conseguiu manter a unidade linguística, cultural e política do Brasil intacta
em torno do idioma português, apesar da influência tribal africana e nativista
indígena, além do aporte dos idiomas dos múltiplos imigrantes?
Se a Grécia gerava o homem guerreiro espartano
pela técnica e força física e o ateniense pela força intelectual e política,
como podemos encontrar na formidável combinação desses dois tipos encarnados
por Leônidas e Temístocles, na famosa guerra das Termópilas (480 A.C) contra o
exército persa de Xerxes, o Brasil teve a combinação étnica do português, negro
e índio (caiçaras e curibocas) na solução eficaz dos embates contra o
estrangeiro para manutenção e ampliação de suas fronteiras territoriais, antes
mesmo do aporte étnico dos demais imigrantes. Eles compuseram a bandeira que
Raposo Tavares levou de São Paulo ao Oceano Pacífico, transpondo países
vizinhos platinos e andinos, uma jornada heróica que poucos povos americanos
empreenderam.
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