A recente aprovação da lei 12527/2011, a
chamada Lei de Acesso à Informação, suscita discussões sobre o que é estatal, governamental,
societário, público e privado, uma questão que se arrasta desde os primórdios
da civilização, bastando que se leiam a Teoria das Formas de Governo e a Teoria
do Estado para uma tomada de consciência a respeito da dicotomia
público/privado.
Quando essa nova lei obriga órgãos públicos
federais, estaduais e municipais (ministérios, estatais, governos estaduais,
prefeituras, empresas públicas, autarquias etc.) a oferecer informações
relacionadas às suas atividades a qualquer pessoa que solicitar os dados, aqueles
que a elaboraram partem da concepção de que democracia é o cidadão bem
informado sobre os gastos do governo.
Assim se expressa o ministro Jorge Hage, chefe
da Controladoria-Geral da União: “O Brasil dá mais um importante passo para a
consolidação do seu regime democrático, ampliando a participação cidadã e
fortalecendo os instrumentos de controle da gestão pública”.
Essa lei estabelece, portanto, uma relação
entre o governamental (que não é o estatal, porque os documentos relacionados a
assuntos de Estado, de caráter reservado, sigiloso ou secreto, continuarão
sendo protegidos) e o privado, representado pela cidadania em si.
Mas, a democracia contemporânea é mais ampla e
envolve os âmbitos estatal, público e societário, ou seja, Estado,Sociedade e
novos atores em cena (igreja,ONGs, empresas transnacionais, etc.). O que
caracteriza verdadeiramente a democracia é a circulação da informação e da
participação em todos os sentidos do sistema político (vertical e horizontal,
ascendente e descendente).
Assim, a comunicação política, conjunto de
mensagens circulantes, que condicionam as ofertas e demandas do sistema, tem
fluidez natural e gera os fatores característicos da democracia: liberdade de pensamento
e expressão, circulação de informações, participação popular, governabilidade,alternância
de poder, pluralismo ideológico,etc.
Segundo o ministro Hage, “ao regulamentar o
artigo 5º, inciso XXXIII da Constituição Federal, o Brasil, além de garantir ao
cidadão o exercício do seu direito de acesso à informação, cumpre, também, o
compromisso assumido pelo país ante a comunidade internacional em vários
tratados e convenções”.
Acrescenta que: ”A Lei 12.527 representa uma
mudança de paradigma em matéria de transparência pública, pois estabelece que o
acesso é a regra e o sigilo a exceção. Qualquer cidadão poderá solicitar acesso
às informações públicas, ou seja, àquelas não classificadas como sigilosas,
conforme procedimento que observará as regras, prazos, instrumentos de controle
e recursos previstos.”
Nesse aspecto, a lei é ambígua, pois esbarra na
dicotomia público/privado. O que é informação pública? O que é informação
privada? Qualquer cidadão pode saber quanto ganha um funcionário público em
vencimentos, mas nenhum cidadão consegue saber o salário do funcionário de uma
empresa privada, a menos que atropele o diretor-de-pessoal e o dono da empresa.
E vale lembrar que o conceito de público hoje pode também ser aplicado ao
estatal e ao público-não-estatal (terceiro setor).
O governo comete aqui o equívoco de confundir
estatal com governamental, público com privado, assim como cometeu quando deu à
Comissão da Verdade um status de
assunto de Estado,quando não chega a ser nem governamental. Seria assunto estatal,
se não houvesse a Lei da Anistia,que gerou os efeitos políticos concretos
pertinentes à alternância do poder. Hoje é assunto público não-estatal, na
medida em que envolve prescrições de órgãos internacionais, como a ONU e a UNESCO.
No tocante à transparência, Jorge Hage observa
que “o Brasil já é referência em matéria de divulgação espontânea de
informações governamentais: O Portal da Transparência do Governo Federal,
criado e administrado pela CGU, já foi várias vezes premiado, nacional e
internacionalmente, sendo considerado um dos mais completos e detalhados sites
de transparência do mundo. Faltava-nos, no entanto, uma lei que regulasse o acesso
amplo a qualquer documento ou informação específica buscados pelo cidadão”
A corrupção é um tema universal e engloba todos
os universos da informação: O estatal, o governamental, o societário, o público
e o privado. Prova disso é que o portal Transparência do Governo Federal concorre
com organizações como a Transparência Internacional (que mede o índice de
percepção da corrupção nos países e que tem sede em Berlim) e sua ex-filial
Transparência Brasil, com sede em São Paulo, para não mencionarmos aqui outras
iniciativas espontâneas e orgânicas, inclusas as da imprensa, de combate à
corrupção existentes no Brasil e no exterior.
Lendo-se a obra de Norberto Bobbio (“Estado, Governo
e Sociedade”), obtém-se uma boa noção das dificuldades de clarificação das
intenções do governo e do texto da nova lei de acesso à informação. Essa lei
pode, em alguns aspectos, representar o que o governo declara como intenções –
democracia e combate à corrupção -, mas essa democracia mitigada desmobilizante
e as denúncias de corrupção em muitos setores do Brasil revelam o grande abismo
entre o país virtual e o país real.
Reduzir
todo esse abismo é impossível, mas reduzi-lo o máximo possível, conforme
Oliveira Viana, deve ser meta permanente de todo legislador e todo constituinte.
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