O que se esboça, no horizonte político de curto prazo, em
decorrência da Ação Penal 470 – processo do “Mensalão’-, julgada pelo Supremo
Tribunal Federal- STF-, é uma disputa em torno do controle da
constitucionalidade envolvendo os poderes Legislativo e Judiciário.
Esse controle, que, tradicionalmente, é exercido no Brasil
pelo STF, começa a ser questionado pelo Poder Legislativo, no tocante à decisão
inédita do STF de cassar os mandatos dos parlamentares condenados pelo “Mensalão”,
João Cunha, Pedro Henry, Valdemar da Costa Neto e José Genoíno, e do deputado
federal Natan Donadon (PMDB-RO), anteriormente cassado por peculato e formação
de quadrilha. Tais cassações ainda aguardam publicação.
A reação do presidente da Câmara dos Deputados, deputado Marco Maia,
escorado em parecer de eminentes constitucionalistas da Casa, mostra que o
Poder Legislativo considera o STF nessa questão uma primeira instância e a
Câmara última instância, com base no art.55 da Constituição Federal.
A Câmara dos Deputados reagiu alegando, pela palavra do seu Presidente,
que só a Casa tem prerrogativa para cassação de mandatos de seus membros, mediante
votação secreta em Plenário, com maioria de dois terços, mas esse não foi o
entendimento do Supremo, quando a maioria (oito) dos seus 11 membros votaram pela
cassação.
Para manter o STF no controle da constitucionalidade, a
Câmara, após oficialmente notificada, terá que acatar a decisão do Supremo,
ainda que realize a votação secreta, nos termos constitucionais, para mero
referendo pró-forma da decisão da Suprema Corte, um ritual atípico, que requer
o diálogo entre os três poderes para evitar uma crise político-institucional
John Rawls, em suas reflexões aplicáveis ao controle da constitucionalidade,
observa que nem o legislador e nem o juiz, em situações de impasse, deve manter
o exclusivo controle da constitucionalidade, e recomenda que o Poder
Executivo participe desse diálogo em busca de uma saída que preserve o
equilíbrio institucional e a estabilidade democrática.
O STF é soberano no controle da constitucionalidade, mas
deve-se ater a esse limite, sem intentar legislar, pois o poder legislativo é
ínsito aos detentores do mandato de representação popular, no regime
constitucionalista democrático e no estado de direito. Quanto ao Poder
Executivo, Rawls foi profético há quase um século.
A presença do Executivo na esfera judiciária, implícita, no
Brasil, na nomeação dos membros da Corte pelo Presidente da República –supremo magistrado-
tem sido detectada (falaciosamente ou não) em algumas decisões do STF coincidentes
com interesses do governo, enquanto a presença do Executivo na esfera
legislativa é escancarada, seja pelo jogo de interesses em torno de recursos
orçamentários e cargos, seja pela atuação invasiva do Executivo como
legislador, mediante a edição de medidas provisórias.
Como observa João Gaspar
Rodrigues :” A salvação de qualquer nação e a efetividade de sua ordem jurídica
jazem na grandeza de sua justiça, na sua moral elevada. A barreira a qualquer
intrujice do poder estatal, em seus propósitos expansivos e centralizantes,
deve encontrar pronta vigilância no oráculo da justiça, regaço onde a liberdade
busca confiantemente refúgio. Onde ela não funciona, onde subsistemas pessoais
envolvem-na e onde interesses secundários desviam-na de sua nobre missão, o que
resta é a desesperança e o domínio do arbítrio”.( http://jus.com.br/revista/texto/3477/a-inutilidade-das-leis-em-demasia/2#ixzz2Gf9fizF4).
Cesare Beccaria, em
sua grandiosa obra, “Dos delitos e das Penas”, adverte sobre a necessidade de
respeito aos princípios que regem as prerrogativas de cada poder:
“A primeira consequência
desses princípios é que só as leis podem fixar as penas de cada delito e que o
direito de fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador,
que representa toda a sociedade unida por um contrato social.
Ora, o magistrado,
que também faz parte da sociedade, não pode com justiça infligir a outro membro
dessa sociedade uma pena que não seja estatuída pela lei; e, do momento em que
o juiz é mais severo do que a lei, ele é injusto, pois acrescenta um castigo
novo ao que já está determinado. Segue-se que nenhum magistrado pode, mesmo sob
o pretexto do bem público, aumentar a pena pronunciada contra o crime de um
cidadão.
A segunda consequência
é que o soberano, que representa a própria sociedade, só pode fazer leis
gerais, às quais todos devem submeter-se; não lhe compete, porém, julgar se
alguém violou essas leis.Com efeito, no caso de um delito, há duas partes: o
soberano, que afirma que o contrato social foi violado, e o acusado, que nega
essa violação. É preciso, pois, que haja entre ambos um terceiro que decida a
contestação. Esse terceiro é o magistrado, cujas sentenças devem ser sem apelo
e que deve simplesmente pronunciar se há um delito ou se não há.
Em terceiro lugar,
mesmo que a atrocidade das mesmas não fosse reprovada pela filosofia, mãe das
virtudes benéficas e, por essa razão, esclarecida, que prefere governar homens
felizes e livres a dominar covardemente um rebanho de tímidos escravos; mesmo
que os castigos cruéis não se opusessem diretamente ao bem público e ao fim que
se lhes atribui, o de impedir os crimes, bastará provar que essa crueldade é
inútil, para que se deva considerá-la como odiosa, revoltante, contrária a toda
justiça e à própria natureza do contrato social”.
Virgílio Afonso de
Souza indaga, antes observando que o controle da constitucionalidade faz parte
do jogo democrático e que é preciso haver diálogo entre os poderes para
superação da ênfase a um tipo de guardião constitucional (superação chamada de “legislative
override”):
“Quem
deve ser o guardião da Constituição? Ainda que possamos pensar que, no Brasil,
em virtude de previsão expressa da Constituição, essa é uma questão superada e
que o guardião da constituição é o Poder Judiciário, especialmente na figura do
STF, essa seria uma visão apenas parcial do problema.”
O STF, perante a
sociedade, faz o que deve ser feito: Julga e pune os corruptos. A sociedade
aplaude os juízes e, em especial, elege o ministro Joaquim Barbosa como espécie
de ícone dos novos tempos de
limpeza da política, e talvez não
haja ao Poder Legislativo a mínima
chance de contestar a decisão do STF , através do uso das suas prerrogativas
baseadas no art.55 da Constituição, sem despertar a ira popular que se
multiplica pelas ondas da internet e dos meios de comunicação em geral.
Desde os tempos, como escreveu Gomes Canotilho, um dos mais influentes
constitucionalistas, “o fenómeno da corrupção teve como epicentro jurídico e
dogmático subornar alguém por dinheiro, associado sempre ao abuso da função
pública em benefício privado. A corrupção é um obstáculo à radicação do Estado
de direito democrático, que beneficia de cumplicidade e cobre-se com a
intransparência das atividades públicas e privadas, oculta informações
relevantes, joga com o vazio de responsabilidades, e vive do conúbio entre o
econômico e o político”.
Se a filosofia jurídica recomenda que os três poderes procurem um diálogo para evitar uma crise, pergunto como será formulado esse diálogo para que se obtenha a "legislative override" sem que paire sobre a sociedade a desconfiança de que os condenados do "Mensalão" ficarão impunes? Acredito que uma comissão de notáveis representativa da sociedade deva ser constituída com urgência, ainda que informalmente, para colaborar como "quarto poder"nessa discussão.
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