Francisco das Chagas Leite Filho
(De Buenos Aires)Mesmo convalescente, a
presidenta Cristina Kirchner não se deixou intimidar: mandou estatizar a
Estrada de Ferro Sarmiento, cujos trens foram objeto de três acidentes em 20
meses, com 55 mortos e cerca de mil feridos. O último deles, ocorrido no
sábado, véspera da eleição intermediária do próximo domingo 27/10, flagrou o
maquinista roubando o Hard Disk, contendo os vídeos da operação. O HD foi
recuperado pela polícia, mas seu conteúdo estava danificado, o que
impossibilita a recuperação de imagens e áudio. Os incidentes fariam parte de
um plano de sabotagem e desestabilização, que se manifesta em saques a
supermercados, como ocorreu em fins de 2012, atentados contra redes elétricas,
ataque especulativo e notícias de alta incontrolável da inflação. Algo a ver
com os apagões e ataques ao metrô de Caracas, como denunciou o jornalista José Vicente Rangel?
Tudo está por ser comprovado, mas a campanha eleitoral, que hoje chega a
seu fim, com os comícios dos principais candidatos, se desenvolve sob
implacável assédio por parte do big businesse dos oligopólios de mídia contra
o atual governo. Na verdade, estas eleições não teriam muita importância, não
fosse um detalhe crucial, pois restringem-se à renovação de 1/3 do Senado e
metade das cadeiras da Câmara dos Deputados e, por mais pífio que for o
desempenho eleitoral de seus aliados, a presidenta, não corre sérios riscos de
perder a maioria no Congresso. Elas encerram, no entanto, um risco letal para
os seus opositores: a possibilidade de uma grande vitória governista abocanhar
o quorum qualificado de 2/3 do Parlamento, o que não está muito longe, devido à
folgada maioria de que hoje desfrutam os kirchneristas.
É que este pormenor permitiria uma nova reeleição de Cristina e
maior controle sobre a justiça, a qual tem deferido as ações do gigante Grupo
de Comunicação Clarín, que até agora impediu a aplicação da lei de mídia que o
obriga a desfazer-se de um terço de suas licenças de rádio e TV, e de outros
setores poderosos, como os ruralistas e a transnacional de aviação LATAM (fusão
da antiga LAN chilena e da atual TAM brasileira) contra outras leis e medidas
governamentais.
Oficialmente, Cristina não pôde tomar conhecimento da última
tragédia, felizmente, sem vítimas fatais, mas que provocou um grande
desassossego e cerca de 100 feridos, nem da estatização da empresa privada até
ontem responsável por parte do serviço. Explicou o ministro dos Transportes,
Florencio Randazzo, que a governante não está “anoticiada”, por obediência a
“estrito repouso médico”, consequência da operação intracraneana a que foi
submetida havia 15 dias. Ninguém duvida, porém, que o ministro tenha adotado a
medida de motu próprio e que a nacionalização da Sarmiento obedece a uma
estratégia de reestatização, que já recuperou a petrolífera YPF, empresas de
eletricidade, correios e Aerolíneas Argentinas, entregues a multinacionais pela
privataria de Carlos Menem (1989-1999).
Aí reside toda a fúria contra Cristina, viúva de Néstor Kirchner
(2003-2007), a quem sucedeu no cargo e com quem adota um tipo de modelo
nacional, cuja política, de alto conteúdo social, voltou-se para a recuperação
econômica, a reindustrialização e a recuperação da educação e da tecnologia,
duramente sucateadas nos 12 anos anteriores de políticas neoliberais,
determinadas pelo FMI e sustentadas pelos mesmos grupos oligopolistas que avalizaram
as ditaduras militares e o capitalismo voraz menemista e que hoje
investem contra o governo.
Ausente, presente - Cristina, que até sua hospitalização, exercia um onipresente
protagonismo nesta campanha, ocupando todos os espaços imagináveis, recolheu-se
por completo. Autoconfinada na residência oficial, a emblemática Quinta de
Olivos, nos arredores da capital, por ordens médicas expressas, ela só aparece
quando sai para fazer exames médicos na Clínica Favaloro, onde foi operada.
Suas digitais, contudo, estão evidentes nas principais ações de governo e de
campanha, como a estatização da Ferrocarril Domingo Faustino Sarmiento e na
formatação dos atos públicos do 17 de Outubro, o dia da Lealdade Peronista, e
do comício de hoe de final de campanha.
Tal baixo perfil mudou dramaticamente o cenário eleitoral, pois a
figura-chave e mais polêmica da campanha estava silenciada, por uma dessas
reviravoltas do destino. Ao contrário, porém, do que ansiavam seus adversários,
o retiro presidencial não redundou em mais votos para a inquieta
oposição. Uma pesquisa, divulgada, na sexta-feira inclusive pelo Clarín, a nave
capitânia do grupo comunicacional, atestava a ascensão de 10% na popularidade
da presidenta e de três pontos do principal candidato da coalizão governista, a
Frente para a Vitória, Martín Insaurralde
Insaurralde é um candidato suburbano, prefeito de Lomas de Zamora, um
município do chamadoconurbano de Buenos Aires, pinçado por Cristina para
representar o kirchnerismo e seu modelo nacional. Ele tinha perdido por quase
cinco por cento nas prévias nacionais de 11 de agosto, juntamente com os
candidatos kirchneristas nos cinco principais distritos do país, a começar pela
capital Buenos Aires, que concentra cerca de 40% do eleitorado.
O candidato da oposição, Sergio Massa, um ex-kirchnerista (foi até
recentemente chefe da Casa Civil de Cristina) é também do interior. Ele é
prefeito de Tigre, um município da Grande Buenos Aires. Por causa de sua nova
postura anti-Cristina, está sendo alçado como um presidenciável, ao lado do
prefeito de Buenoa Aires, o neoliberal Mauricio Magri, que está implantando o
modelo chileno na cidade, com o boicote à educação pública e a ressurreição das
políticas privatistas. Buenos Aires fica assim fora da campanha e perdendo
todo o seu charme cosmopolita para seus municípios vizinhos.
Mas a derrocada governista nas prévias trombeteada pela oposição, à frente seu
aparato midiático e econômico, vinha observando uma certa inflexão, como
observava a pesquisa de sexta-feira. Ocorre que, no sábado, houve a terceira
tragédia dos trens Sarmiento, e a oposição aparentava ressurgir novamente
vitoriosa. Só que o maquinista Julio Benítez, um tipo psicótico e com
tendências estriônicas, segundo laudo judicial, agora aparece como o principal
culpado. Ele tentou destruir a câmera interna do trem que mostrava suas últimas
ações, inclusive a a alta velocidade que imprimiu quando se aproximava da
fatídica Estação 11, e, não conseguindo este intento, subtraiu o Hard Disk.
O sindicato dos ferroviários, o Fraternidade, aparentemente, mancomunado
com a oposição, tentou justificar o crime do associado, mas foi desautorizado
pelas manchas de sangue no HD (o maquinista foi linchado ao tentar evadir-se
depois da tragédia). O exame de DNA comprovou que o sangue era de Benítez e que
ele poderia ser o perigoso agente ou inocente útil de uma conspiração contra o
governo, a partir de ações terroristas, envolvendo, não só acidentes de trens,
como saques em supermercados, atentados contra redes elétricas, boatos de hiperinflação
e subida do dólar. O feitiço virou contra o feiticeiro? Vamos aguardar os
resultados deste domingo histórico da conturbada, mas cada vez mais altiva
Argentina.
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