quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Benayon desmonta argumentos de Beluzzo

Adriano Benayon (Doutor em Economia e Professor da Universidade de Brasília)
 
Recebi o texto de entrevista recente do Prof. Luiz Gonzaga Beluzzo (concedida a Eleonora de Lucena e publicada pela Folha de São Paulo , no dia 29/12/2013, sob o título “Governo perde batalha para o mercado financeiro, e País está sob camisa de 11 varas, diz Beluzzo”).

Não discordo da afirmação de que o País está em camisa de 11 varas.

Estou transmitindo esse texto, entremeado por comentários meus, impressionado pelo fato de um conceituado economista, que se diz desenvolvimentista, acatar, no essencial, o que prescreve o sistema de poder  dos concentradores financeiros. Em suma, deixar de questionar os falsos fundamentos dessas prescrições para a política econômica.

Só me dei ao trabalho de fazer isso, porque o entrevistado faz parte de um conjunto de economistas tido por crítico do neoliberalismo e das nefastas políticas da equipe que comandou a área econômico-financeira nos oito anos da presidência de FHC.  Se a entrevista fosse de Malan, Armínio Fraga, Bacha, Lara Resende, Pérsio Arida e outros desse time talvez nem valesse a pena comentar, porque nesses casos são conhecidas as vinculações de interesses que determinam as respectivas posições.

 Folha - O que o sr. acha dessa discussão sobre o tripé?

 Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo - É um arranjo muito recente, tem uns 20 anos no mundo. Virou uma espécie de procedimento ou de arcabouço de política econômica. O fundamento é a teoria das expectativas racionais, que ficou bastante abalada depois da crise. O ápice de prevalência do tripé foi no período em que a inflação foi muito baixa. Há uma discussão se a inflação foi muito baixa por causa do tripé ou se o tripé funcionou porque a inflação era muito baixa. O comportamento da inflação tem a ver com outros fatores relacionados com a mudança estrutural da economia mundial: o surgimento da China e a liberalização financeira.

AB – Beluzzo não fala das verdadeiras causas da inflação.

Aqui tivemos uma situação singular: a valorização ajudou muito a conter a inflação durante um bom tempo. Nunca conseguimos, com exceção de um ou dois anos, colocar a inflação na meta. Lembre-se de que o Armínio [Fraga, ex-presidente do Banco Central, introdutor do regime de metas] mudou a meta. A questão essencial é a interelação entre essas três dimensões: a fiscal, a monetária propriamente dita, a política de juros, e o cambio.

O que diz o tripé? Quiseram manter câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário. Problema 1: durante todo esse período, a flutuação do câmbio se deu numa só direção, a da crescente tendência do real se valorizar.

Isso [o tripé] não é uma regra: é modo de operar, um quadro de referência. Trata-se de um jogo de coordenação desenvolvido dentro de certo arcabouço institucional, de heranças do passado.

Como diz Giorgio Agamben, que não é economista, é um filósofo: existem hoje dois tipos de sociedade: uma, como as sociedades sociedade europeias, que têm relações e preocupações com o seu passado e sua historia; outras que são sociedades animalizadas. Não no sentido pejorativo.

São aquelas que não têm passado nem história, porque os animais não têm historia. Ele diz que os americanos são assim, e nós somos parecidos com os americanos. Tudo parece que nasceu de repente. Isso facilita cuidar de uma coordenação entre política monetária, fiscal e cambial de uma maneira abstrata, como se fosse uma coisa implantada numa sociedade, como se fosse a mesma coisa que aplicar os princípios da fissão nuclear no Brasil na Alemanha nos EUA. A ideia de sociedade desaparece ai.

AB – A citação desse tal de Giorgio Agamben toca as raias da ignorância, ainda mais lastimável que a fustigada na imortal obra de Nicolau de Cusa (De docta ignorantia). Pois, como qualificar a ideia preconceituosa e eurocentrista de considerar semelhantes às dos animais as sociedades de países com história mais curta que a dos europeus? Nesse caso, as dos europeus seriam animalescas em comparação às da China, Índia e às do Oriente Próximo e muitas outras. Mas o que importa são as atitudes, e não se vê os europeus reagindo como deveriam à destruição de sua civilização por parte dos carteis transnacionais e da finança comandada pelos centros financeiros angloamericanos.

Sou brasileiro, mas penso conhecer da história europeia coisas importantes, que a maioria dos europeus ignora, inclusive que a civilização européia entrou em declínio após seu magnífico apogeu no século XVII, ainda continuado na música no XVIII. Valorizar e aplicar as grandes lições da História não é privilégio dos nacionais dos lugares onde elas foram produzidas.

Folha:O Brasil tem o tripé desde 1999. Esse modelo deveria ser abandonado?

Não acho que deva ser abandonado. É uma maneira de enquadrar ou organizar as expectativas. Isso não quer dizer usar de uma maneira mecânica. Têm certas variáveis que não se controla.

Folha: Alguns propõem uma revisão. Por exemplo, que a meta de inflação seja bianual. O que o sr. acha?

Isso pode [ser feito], vários países fizeram. Também [há o debate] se a meta poderia estar concentrada no núcleo da inflação etc. Isso tudo pode ser objeto de discussão, de uma discussão minimamente racional.

Folha: Quem aplica hoje o cerne do tripé? A China não aplica, certo?

A China não aplica porque tem as normas dela. Tem uma política monetária e cambial muito ligada à industrialização e às exportações. Já tiveram momentos de pressão inflacionaria e foram muito firmes e não deixaram escapar, resistiram. Não desvalorizaram para não afetar os países vizinhos.

A crise asiática ocorreu nos países que tinham fundamentos em ótima situação, com exceção do déficit em conta corrente. A crise asiática foi uma crise financeira clássica. Já foi dito que os Bourbons não esqueciam de nada, mas não aprendiam nada. Os economistas são descendentes dos Bourbons. Não se lembram de que essas crises foram determinadas independentemente da situação da macroeconomia.

Digo isso porque os países que têm moedas não conversíveis, como Brasil, México, Rússia, China têm que estabelecer barreiras de defesa que são mais complexas do que ter os fundamentos. A Espanha tinha uma situação fiscal maravilhosa antes da crise. É muito parecido ao que aconteceu na Ásia. Havia superávit fiscal. A economia estava explodindo, os salários e a receita estavam crescendo. Não tinham problema cambial. Quando ocorreu a crise do euro reverteu tudo: o déficit foi às alturas, e o governo teve que socorrer o setor privado.

Outra questão é até que ponto o tripé é suficiente para garantir a estabilidade. Quando falo estabilidade tenho calafrios. A noção de estabilidade é enganosa, porque o capitalismo não é estável por definição.

Folha: Mas existe vida além do tripé?

A questão central é atenuar as flutuações e os custos. Alguém já disse que havia uma crença no padrão ouro, que o ideal seria uma inflação muito próxima de zero e o ouro seria uma âncora natural que conduziria a uma inflação próxima de zero. É claro que a âncora não era natural coisa nenhuma. Porque o que regulava aquelas economias era a taxa de juros do banco da Inglaterra. A moeda reserva era a libra naquele acerto entre os países. Depois da Segunda Guerra, quando todas as experiências de volta ao padrão ouro foram um desastre, a ideia não era estabilizar o nível geral de preços, mas manter a inflação baixa.

A política de metas esta enquadra nessa perspectiva: de manter a inflação baixa. Baixa nos termos de permitir a movimentação dos preços relativos e organizar de maneira adequada as expectativas dos empresários. De modo que eles montem seus negócios de riqueza, de maneira a assegurar o investimento de longo prazo. Se se deixar a inflação fugir de controle, já assistimos a esse filme: não há como antecipar corretamente nada. Como [John Maynard] Keynes já disse, o futuro é incerto e se tem que fazer uma aposta. Para fazer a aposta, é preciso ter um mínimo de expectativa a respeito da evolução.

Folha:Por que há o fetiche do tripé? Governo e oposição não querem mexer nisso.

 Os países europeus só suspenderam as restrições à movimentação de capital nos anos 1990, com a globalização financeira. O tripé foi se construindo na medida em que foi avançando a globalização financeira, o neoliberalismo. Isso já está na perspectiva criada por [Margaret] Thatcher e pelo [Ronald] Reagan.

Eles responderam a uma transformação que já estava ocorrendo no próprio capitalismo, que estava tentando se desvencilhar daquela estagnação dos anos 1970. Veio a teoria das expectativas racionais: o setor privado é sempre estável e o governo é responsável pela instabilidade da economia. O mercado é o lócus do homem racional. No fundo o que diz o tripé: atrapalhe o menos possível, não faça intervenções indevidas.

Folha:O tripé explica a estagnação de hoje? O governo Dilma está mais próximo do de FHC do que de Lula?

Infelizmente, em economia, não se tem respostas não ambíguas.

AB. Típica generalização de economista em cima do muro...

Quando Lula assumiu o tripé já estava de pé, com uma meta mais elevada. Lula navegou nas benesses do ciclo de commodities, movido pela explosão da China e dos EUA – chamo de modelo sino-americano: uns consomem e outros produzem. Aquela liquidez internacional fantástica.

Tudo isso ajudou a abrir espaço para fazer as políticas sociais. O tempo inteiro a taxa de câmbio ficou valorizada, a exceção de 2008, quando foi a R$ 2,40. Mas logo depois trataram de jogá-la para baixo. A indústria indo mal, por causa do câmbio. Depois da crise, tivemos o "quantitative easing" [injeção de liquidez pelos EUA], e o Brasil acumulou U$ 375 bilhões de reservas, um fato inédito na história do Brasil. Veio uma política de desoneração, de facilitação do consumo, de financiamento, ajudada lá trás pelo credito consignado, que continuou.

O que sustentou a recuperação foram as medidas adotadas na área creditícia e de estímulo ao consumo. Essas políticas têm suas limitações. Não só por conta do grau de endividamento das famílias, que subiu, mas não se nota índices de inadimplência absurdos no Brasil. Ao contrario, é surpreendente que não sejam tão absurdos. Isso foi o Lula. O governo Dilma começou com a taxa de câmbio bem valorizada. Nos seus primeiros meses o dólar foi a R$ 1,60. Temos um desequilíbrio fundamental entre todas as variáveis do tripé: a que se comportou pior do ponto de vista do crescimento foi a taxa de câmbio.

O fato de a economia brasileira ter mantido essa taxa de câmbio valorizada por tanto tempo afetou o investimento industrial. Só um ingênuo acha que o sujeito vai projetar uma fábrica com uma taxa de câmbio de R$ 2,40, que depois vai a R$ 1,60, e volta para R$ 2, depois para R$ 1, 50. Tem clima para manter o investimento? Não. O que a maioria dos industriais fez? Eles se tornaram importadores. Há um processo de dessubstituição de exportações e de incentivo a importações. Isso se criou por aqui e tem efeito sobre a taxa de crescimento. Qualquer economista keynesiano razoável concorda que a política fiscal tem que ser anticíclica.

O objetivo dos detentores de riqueza é maximizar o ganho monetário. Não querem maximizar o produto. O componente da demanda que é mais sujeito a flutuações é o investimento. Porque se está fazendo uma aposta para montar aquela fábrica e é preciso saber se ela vai realizar os rendimentos esperados. É preciso dar ao setor privado um horizonte de segurança mais ou menos aceitável. É uma coisa que os governos têm dificuldade de fazer. É preciso criar um espaço de confiança que faça com que os empresários continuem investindo no ritmo razoável.

Este governo tem essa dificuldade? Tem. Porque num momento crucial, na discussão das concessões, houve uma tentativa de fixar a taxa interna de retorno –o que já foi debelado. Isso é um equívoco, não tem cabimento. Mas há certo exagero na increpação de intervencionismo da presidente. Não tem nenhum aumento de intervencionismo expressivo se comparado com o intervencionismo do governo Lula. Ele fez políticas sociais usando recursos fiscais. Ela continua fazendo isso.

Folha: Como vai Dilma?

Dilma se deu conta de que os efeitos da crise sobre o Brasil foram maiores do que se podia pensar e duraram mais tempo. Nos metemos numa camisa de 11 varas, num enrosco. O câmbio valorizado fez com que perdesse 200 e tantos bilhões de dólares na balança comercial com exportação de manufaturados. Ter o câmbio valorizado no momento em que a economia está deprimida e o comércio internacional está crescendo em torno de 3%... As exportações da China cresceram 12,5% no mês passado. Se apresentar isso a um cachorrinho ele vai entender: evidentemente tem alguém pegando o mercado de alguém.

AB. Quem acha que o Brasil se está desindustrializando principalmente por causa do câmbio, está só justificando o sistema (não se importa nem com a infraestrutura nem com a estrutura de mercado: concentrada ou competitiva; nacional ou súdita das transnacionais.

Folha:Mas quando Dilma assumiu a economia tinha crescido 7,5%, e ela puxou o freio de mão em 2011. O governo provocou muito do que está aí. Não dá para culpar só o fator externo, o sr. concorda?

Em 2011 o governo puxou o freio de mão de mais do crédito, e foi um erro. Foi um erro do qual nós todos temos culpa. Estávamos preocupados com o desempenho fiscal do governo e avaliamos mal. Eu inclusive. Estava errada aquela avaliação.

Esse debate sobre o tripé tem a ver com a formação de consensos entre os economistas. Depende muito mais do poder de grupos da liderança de impor certas questões vis a vis a outras. Por que a questão do câmbio, que para mim é crucial, é deixada de lado?

Por quê? Porque não há nenhum interesse em discutir essa questão do câmbio, porque está muito bom assim.

Bom para quem? Essa questão do câmbio envolve a discussão sobre movimento de capitais, sobre a relação entre a moeda reserva e as moedas não conversíveis, coisas que em boa medida estão fora do controle da gente.

Folha:O governo poderia ter outra política cambial? Os próprios empresários não se beneficiam dessa política?

Os empresários se beneficiam porque a forma de funcionamento de acumulação das empresas mudou. Hoje a avaliação da empresa se dá pelo Ebitda, que é o caixa da empresa antes de juros, impostos etc. Converso com vários empresários que estão vendendo suas empresas ou estão sendo estimulados a fazê-lo. A pergunta é quantas vezes de Ebitda. O que eles precisam medir? O investimento fica muito mais caro.

Folha:Então o que importa mais é o resultado financeiro, o investimento é menos?

Sim. O investimento fica custoso, porque mexe no caixa, no resultado. No mundo inteiro ocorreu uma tremenda concentração em todos os setores. Essa concentração agravou esse problema de controle dos mercados. Lawrence Summers disse recentemente que o problema nos EUA é que as empresas estão acumulando caixa e não investem. Daí a economia não vai.

Folha: Quem no Brasil se beneficia dessa questão do câmbio?

No Brasil, quem se beneficia é quem faz arbitragem com câmbio e juros, todo mundo que tem capacidade financeira e articulações fora do Brasil para fazer isso. As empresas pegam seu caixa e fazem posição no mercado futuro de juros e câmbio.

Folha: Como vai essa perna do tripé?

Está manca.

Folha: O Brasil não poderia ter outra posição?

Tem custos. Se deixou o câmbio se valorizar por muito tempo e temos uma defasagem grande, calculo em 30% a defasagem. Há o custo do impacto na inflação.

Folha: Esse impacto não é exagerado? Houve uma desvalorização e a inflação não subiu, certo?

Mas foi uma coisa muito cuidadosa. É preciso ir deslizando o câmbio. Porque se há uma desvalorização abrupta, quebram empresas que estão endividadas em moeda estrangeira. Se se deixa o câmbio se valorizar durante muitos anos, se muda o "sourcing", o fornecimento, para fora. Foi o que aconteceu com muitos. Temos hoje uma indústria importante de autopeças? Não. E as grandes empresas de autopeças são também grandes empresas concentradas. Houve concentração em cima, nas integradoras, e em embaixo. A indústria brasileira ficou nanica nos últimos 30 anos, foi encolhendo.

Folha: Tem salvação para a indústria?

O Brasil vai ter que corrigir a política cambial. E impedir que uma eventual subida da inflação coma a desvalorização real. É preciso fazer uma correção. Não pode ficar dizendo que vai fazer, pois esse é um mercado onde os operadores são muito rápidos na resposta. Mas o governo tem que buscar uma meta para o câmbio.

Folha:Como seria essa meta?

É questão difícil de responder. Se eu dissesse que sei responder, estaria mentindo. Se eu soubesse, estaria vendendo essa consultoria por aí e ganhando dinheiro.

AB. O elemento não sal desse assunto do câmbio; não cogita de medida alguma profunda, que possa pôr em questão o capitalismo (concentrador, transnacional e desnacionalizador, implantado há decênios no Brasil). Daí é só tirar o corpo fora, com tiradinhas inteligentes.

Folha: Em 2012, Dilma atacou as altas taxas de juros e pareceu adotar uma posição mais firme em relação a bancos. Depois, os juros subiram. Houve retrocesso?

Em termos. Isso é um jogo de vaivém. Como a inflação começou a bater no teto da meta, e isso no consenso é uma coisa que... Disseram que o governo abandonou o tripé, e isso virou ingrediente de uma batalha eleitoral. Na verdade, o governo continuou administrando a política monetária e fiscal – que é a outra pata fraca do tripé.

AB. Por acaso, a monetária não é fraquíssima? Por que Beluzzo não a discute? Por que aí vige a “inquestionável” supremacia dos bancos e dos concentradores financeiros em geral usando o Tesouro, o BACEN como seus feudos.

E isso tem a ver com o crescimento também. Se a economia cresce 1,5% ou 1%, é claro que não se consegue um superávit de 3%. Nem a tapa, é impossível. Se pode colocar Jesus Cristo. E tem muito Jesus Cristo por aí. Tem uma coleção de Jesus Cristo na economia que eu fico impressionado. Deve impressionar até o próprio, que deve ficar aturdido.

Tem uma relação entre crescimento, superávit primário e a política monetária. Todas são questões relacionadas com a natureza dos mercados financeiros. Temos aqui uma enoooorme herança do período inflacionário, que é o volume de operações compromissadas, que ficam no mercado de curtíssimo prazo monetário. Conseguimos nos livrar do estoque de dívida que estava dolarizado, que é um grau de liberdade. Mas agora precisamos lidar um pouquinho com essa questão do prazo e da distribuição ao longo do tempo das aplicações financeiras.

AB. E que tal com dívida pública, que tal com a questão de como o governo se pode financiar sem endividar-se, que tal com as taxas de juros?

 Folha: Como assim? Elas deveriam ser alongadas?

É mais importante nesse momento, em vez de alongar, tentar uma política de compras, de administração do mercado monetário, que afeta a tesouraria dos bancos, com taxas de juros menores e às vezes com prazos mais curtos. Keynes escreve depois da guerra, quando havia um problema de credibilidade da libra na divida. Ele diz que o objetivo deve ser reduzir a taxa de juros, numa economia que pretende crescer depois da guerra. Não fique com a cabeça que se tem que alongar, que alongar é bom. Tem que administrar de modo a maximizar outro objetivo, que é o crescimento. O tempo inteiro ele diz que nenhuma conclusão dogmática deve ser tirada.

AB. Para que é preciso invocar Keynes a toda hora - como se fosse pastor citando a Bíblia – até para “sustentar” obviedades e lugares comuns, cuja relevância no contexto não é central?

Folha: Este governo não é muito dogmático em certos aspectos? Não há uma paranoia a cerca da inflação?

Não é do governo. Esse é o consenso que se estabeleceu muito mais entre os economistas do mercado e a sua influência sobre a opinião publica. Se bem que a opinião púbica, no Brasil, é uma coisa complicada. O que aconteceu é que o governo não tem recursos de poder. Apesar dos U$ 375 bilhões [de reservas], ele vai ter dificuldade de resistir, se os americanos mudarem a política monetária.

Vai ter dificuldade porque dessa vez a ação da política monetária americana foi muito intensa. Eles estão pensando até em fazer um sistema de recompra reversa, para impedir que a taxa de juros suba muito quando eles tirarem os estímulos. Porque isso pode ser contraproducente e pode abortar o crescimento modesto que eles estão tendo agora. Em relação às moedas não conversíveis [como o real], o impacto pode ser muito forte, se não houver defesas adequadas.

Folha: O cenário da dita "tempestade perfeita", que é a combinação do fim dos estímulos dos EUA com o rebaixamento da nota brasileira pelas agências de classificação risco, está no horizonte, como diz Delfim Netto?

Não concordo muito com essa ideia da tal tempestade perfeita. Meu amigo Delfim que me perdoe. A mudança na política monetária americana vai ocorrer algum dia. Janet Yellen que está lá.

Folha: Mas o vice dela deve ser Stanley Fischer, que é mais ortodoxo, certo?

Se se olhar a composição do Fed, vai haver certa resistência a tirar [os estímulos] de uma maneira abrupta. Talvez se faça de uma maneira mais suave. [A entrevista foi concedida na segunda-feira, 16/12; na quarta-feira seguinte, 18/12, o Fed anunciou redução suave dos estímulos, com manutenção de juro próximo de zero.]

Porque todo mundo se lembra da crise de 1994. Houve uma recessão em 1990-91, e fizeram a mesma coisa: baixaram a taxa de juros para muito próximo de zero, abasteceram de liquidez – não na proporção que ocorreu agora, Mas quando ele subiu, teve uma tremenda crise. Teve gente que micou com aqueles papéis e o balanço virou uma porcaria.

Então essa transição agora deve ser mais gradual? Se houve alguém que aprendeu alguma coisa com isso, vai fazer uma coisa mais gradual. Porque fazer uma coisa "agora acabou"... aí a coisa vai ficar preta.

Por que não a tempestade perfeita? Porque imagino que o governo deva estar se preparando para a eventualidade que isso ocorra. Tem que preparar as defesas. O Brasil, por exemplo, tem um acordo de swap de moeda com a China que pode ajudar. Tem esse fundo de estabilização dos Brics, que também pode ajudar. É de interesse da China. Se presta pouca atenção nessas negociações que fizemos com a China. Isso nos provê de recursos que vão alem das reservas de U$ 375 bilhões. O compromisso é que esse fundo seja usado para impedir o ataque a moedas dos países envolvidos. O governo tem que se preparar para isso, tomar medidas de proteção ao mercado local.

Os juros devem subir muito? Em todas as experiências, aponte uma em que se subiu o juro com uma mudança desse tipo e que funcionou para segurar o dinheiro? Não conheço nenhuma. É ineficaz. Quando se aumenta o juro, o que o cara fala: a dívida publica desses caras vai para o beleléu e vou mesmo me mandar. O juro não vai segurar. Em 1998/99, a taxa de juros foi a 40%, e o que aconteceu? A turma continuou se mandando. Eu ligava a TV e via: saíram hoje U$ 3 bilhões...

E a questão do rebaixamento é tão importante? Esse negócio do rebaixamento é um exemplo cabal das redes de influência e das relações de poder. O que essas agências de risco fizeram durante o período pré-crise – dando AAA para blocos de ativos. É impressionante que as pessoas falem delas com o respeito que continuam falando. Eles deveriam estar na cadeia. Num mundo sério, estavam recolhidos ao xilindró. No entanto, eles continuam dando palpite.

Como nos últimos anos 40 anos, sobretudo nos últimos 20 anos, o mercado de securitização se ampliou muito. As instituições que vão adquirir esses papéis precisam de informação sobre a qualidade dos papéis. Sugiram as agências de avaliação de risco, que avalizam a qualidade do papel. Só que elas se desmoralizaram completamente. Logo depois da crise, [Angela] Merkel e [Nicolas] Sarkozy sugeriram a criação de uma empresa pública de avaliação de risco. Não foi para frente, porque eles não tiveram força para fazer isso.

Folha: O que está dando errado no governo Dilma? Por que está fracassando na economia, com um crescimento medíocre, comprável ao de FHC?

Não acho que o governo esteja fracassando na economia. O crescimento é ruim, comparável ao de FHC, que foi péssimo. Há esse enrosco do câmbio, crescimento e juros. A política fiscal poderia facilitar a política de juros, se houvesse uma situação fiscal mais estabilizada. O núcleo do enrosco é o desalinhamento do câmbio, para um país que está metido nesse mundo de hoje. Isso, que já era grave em outras circunstâncias, hoje é crucial porque se tem um competidor temível [a China].

AB. A China não compete mais com o Brasil, mas, sim, principalmente com economias desenvolvidas e de padrão tecnológico incomparavelmente superior ao do Brasil.

Durante anos, o resultado do agronegócio cobriu o déficit da indústria, que esta em déficit sistemático há cinco ou seis anos.

 AB. Um dos grandes problemas é que não está aí apenas o déficit da indústria, mas também o dos serviços e o das rendas. Por isso, por mais que o Brasil exporte tudo que é minério e o agronegócio deite e role, não há como evitar a crise cambial, enquanto subsistir o atual modelo econômico e as atuais estrutura e infra-estrutura.

Folha: Esse déficit dobrou no governo Dilma. Por quê?

Porque se tem a acumulação de uma valorização com a crise. Na crise, o cara quer jogar o excesso de capacidade dele em cima do mercado do outro. Por isso, dizer que a crise não afeta o governo Dilma... De fato, a fase aguda da crise já passou. Mas há as consequências estruturais da crise. Hoje o comercio internacional está crescendo a 3%; a China, expandindo a 12%. E nós estamos a 2%. Só esse diferencial dá o aumento do déficit.

AB. De novo, enrolando. A crise só rebenta com os países cuja estrutura e infra-estrutura foram moldadas segundo os interesses imperiais.

Folha:Com o resultado do governo Dilma mais próximo do de FHC, onde está o desenvolvimentismo?

No debate, essa situação é apresentada como fracasso do desenvolvimentismo. Para dizer a verdade, não sei direito de que desenvolvimentismo eles estão falando.

Dilma não é desenvolvimentista? O que é desenvolvimentismo agora? É se colocar em condições de competir nesse mercado desgraçado que está ai. Competir, avançar, fazer acordos, crescer. O centro da turbulência está na inadequação do setor externo, exportações e importações brasileiras na sustentação do crescimento. O Brasil não vai ter um modelo "export led" [orientado para a exportação]. O que foi a confiança do governo? Foi de que o mercado interno iria se expandir, conforme se expandiu. Mas basicamente o crescimento é baixo porque não há dinamismo na indústria.

AB. Sim, mas Beluzzo esquiva-se de entrar em profundidade na questão relevante: por que não há dinamismo na indústria.

Folha: Ao contrário dos que dizem que o governo Dilma é o fracasso do desenvolvimentismo, o crescimento é baixo porque as medidas tomadas por Dilma não são desenvolvimentistas? O sr. concorda com essa avaliação?

Hoje o desenvolvimentismo é uma palavra ambígua. Alguns falam em desenvolvimentismo pensando nos anos 1950, 1960. Esquece. O ambiente internacional é outro, a configuração da economia mundial é outra. É preciso procurar outros caminhos. Temos algumas pontas importantes para que o desenvolvimento possa ser retomado. Uma delas é o próprio agronegócio e o espírito empresarial que está lá. Pode-se articular essa capacidade empresarial, estimulando que ela se mova para outros setores, sobretudo mais próximos.

Folha: Usar o agronegócio para industrializar?

Isso, para participar na indústria de equipamentos agrícolas e na informática ligada a eles, mecanização, por exemplo.

Como os capitais do café que, no passado, foram para a indústria?

Sim, fazer o que os australianos fizeram o tempo inteiro. A segunda [oportunidade] está relacionada com o pré-sal, que tem um modelo muito bom, o regime de partilha.

AB. Realmente o homem está alinhado com o sistema.

Folha: O que o sr. achou do leilão da Petrobras?

Foi ótimo. Muitos acham que a Petrobras podia tocar sozinha, eu acho que não, que o volume de investimento é muito pesado. Precisa partilhar. Nesse mundo de hoje, não se pode repetir um nacionalismo dos anos 1950, 1960. Não há condições, se você quiser participar desse jogo.

AB. Discurso típico de entreguista. Não se trata de repetir coisa alguma dos anos 50 ou 60: nem o nacionalismo de então, nem o entreguismo que acabou prevalecendo (não admira que Beluzzo considere JK desenvolvimentista, e só falta considerá-lo nacionalista!). Trata-se de viabilizar o real desenvolvimento, que não é realizável em consonância com o que desejam as potências imperiais e seus porta-vozes e homens de palha locais.

A China não faz isso? A China se vale da entrada de capitais. Foi o país que melhor aproveitou, com políticas de interesse nacional, o neoliberalismo dos ricos. Parece um paradoxo, mas não é. Fez uma integração muito inteligente.

AB. Beluzzo ou se faz de idiota ou nos considera como tal. A abertura da China não envolveu privatizações, até hoje a moeda e do crédito estão predominantemente, se não quase totalmente, nas mãos do Estado, às transnacionais admitidas na indústria não foi facilitado dominarem o mercado local e, ao contrário do que ocorre no Brasil, essas transnacionais foram obrigadas a entrar com capital e a transferir tecnologia. No Brasil, elas esvaziam o País de capital e o fazem pagar por tecnologia jamais absorvida por ele. E por aí vai.

Por que isso não ocorreu no Brasil? Porque quando foram ocorrendo as mudanças tecnológicas e na geoeconomia mundial, o Brasil estava metido na crise da dívida externa.

AB. Não é assim, sr. Beluzzo: o Brasil deu subsídios fenomenais para que as transnacionais das potências hegemônicas controlassem a produção industrial e outras no País, e foi isso que causou a escalada da dívida. A dívida não nasceu e cresceu antes da entrada das transnacionais, mas, sim, em consequência dessa entrada. 

Lá nos anos 1980? Quando as importações sobre o PIB chegaram a 3%! Foi um fechamento forçado.

AB. Com outra estrutura econômica e com governo autônomo, esse fechamento teria sido uma benesse para o desenvolvimento de indústrias e tecnologias.

Porque não tinha dólar, o país estava quebrado? Quebrou. No Brasil, é o negócio da animalidade. O sujeito não liga [o que ocorre hoje] com o que aconteceu com o passado. Durante todos os anos 1970, nós dizíamos que aquele padrão de financiamento ia dar confusão, que ele só sobreviveria enquanto os americanos não tentassem recompor a força do dólar. Quando eles tentaram, quebraram a gente. Parece que os anos 1980 surgiram do nada, caíram de Marte!

 Os anos 1980 caíram dos anos 1970, do padrão de financiamento. Não falo mal da intenção do 2º PND [Plano Nacional de Desenvolvimento, 1975-1979], mas a composição setorial foi ruim. Porque repisou os mesmos setores que estavam ai: siderurgia, metais não ferrosos. João Paulo [dos Reis Velloso] fez um esforço para montar um sistema de ciência e tecnologia que continua até hoje e foi avançando. Mas nós não incorporamos nenhum novo setor que surgiu na indústria mundial. Os anos 1980 foram um desastre, uma sucessão de planos de estabilização emergenciais. Eu mesmo participei de um, o Cruzado. Mas a gente sabia que aquilo tinha limitações seríssimas. Só estabilizou quando se tinha reserva.

AB. Não se tratava de questão setorial, mas, sim, do padrão geral da industrialização brasileira, um padrão fadado ao fracasso, em função da dependência financeira e tecnológica em que foi montado, desde o golpe de 1954, com a política de investimentos estrangeiros desenhada por Eugênio Gudin, Otávio Bulhões e outros “apaixonados” pela City de Londres pela City de Londres e pelos amigos dela, norte-americanos e europeus.. Roberto Campos não emergiu do nada em 1964, ele fez parte do governos de JK e de Goulart.

Folha: Dilma é desenvolvimentista?

A Dilma é desenvolvimentista, só que não está conseguindo se livrar desses constrangimentos que vêm dos anos 1970 para cá. Ela recebeu a taxa de câmbio valorizada. Fez um esforço para desvalorizar. Porém, a inflação bateu no teto da meta. O que o BC fez e tinha que fazer? Subiu a taxa de juros.

AB. Beluzzo considera desenvolvimentista (o que é isso?), quem ignora a estrutura e a infra-estrutura e a autonomia financeira do Tesouro e sua supremacia sobre um banco central governado pelos banqueiros e com a Constituição garantindo a estes a mamata dos títulos do Tesouro. Considera desenvolvimentista quem só trabalha com as ferramentas bem vistas pelo “mercado financeiro” , i.e., os concentradores financeiros.

Tinha que fazer? Tinha. É preciso avaliar o que custa mais. Não tem regra. Se se perde o controle da inflação, ela vai para 7%, 8%, o risco de ela ir para 10% é muito maior. Não dá para num país que teve essa experiência hiperinflacionaria dar a sensação de que se está largando mão da inflação.

AB. Beluzzo acredita na estória de que a taxa de juros é  instrumento capaz de conter a alta dos preços.

Depois de verbalizar uma posição mais firme em relação ao sistema financeiro, Dilma recuou? Ela foi enquadrada pelo sistema financeiro?

Não é que ela foi enquadrada. Essa palavra supõe.... Há um problema de relação de força. Não é saber quem tem razão. É saber quem tem mais poder de fogo, quem tem mais força.

Folha: Quem tem mais força: o mercado financeiro ou Presidência da República?

O mercado financeiro. No mundo inteiro. Ou se acha que os europeus fazem isso porque acham engraçado? É por que eles entregaram a rapadura.

AB. Veja-se o que é a mentalidade entreguista. Para Beluzzo, o mundo inteiro significa o eixo imperial Londres-EUA e os que seguem as regras imperiais entre os desenvolvidos e os demais países. Para ele, não fazem parte do mundo: China, Rússia e um grande número de países que não seguem in totu essas regras.

Folha: Entregaram a rapadura para o mercado financeiro?

Sim, porque não se pode mexer naquilo que é essencial.

AB. Aí está a declaração de allegiance total às regras imperiais: enunciar a equação entre essas regras e o que é essencial, i.e., aquilo de que não nos devemos afastar de forma alguma.

Folha: O que é essencial? Não deveria ser emprego, salário, bem-estar da população? É o sistema financeiro?

O essencial é o emprego, a renda, o bem-estar das pessoas. Mas estou dizendo que, nesse caso e depois de uma crise dessas proporções, houve uma inversão nas relações de poder se se comparar com os anos 1930. Porque nos anos 1930, o [Franklin] Roosevelt... Pam! Deu um murro na mesa, limpou e disse chega. Assim mesmo a economia foi devagar. O [Adolf] Hitler não só disse chega, como, no fundo, ele estatizou o crédito. Criou a Mefo, uma empresa privada para escapar do financiamento direto do tesouro das obras. O desemprego na Alemanha chegou a 43%; nos EUA foi 27%. Roosevelt sofreu oposição de todos os lados, inclusive da corte suprema.

Perdeu várias questões na corte suprema, sobre as primeiras instituições do New Deal. Ele foi costurando pelas beiradas. Hitler, não. Falou, é o seguinte: vão reconstruir a economia alemã. Criou essa Mefo, e um sistema de controle de preços duríssimo. No fundo, fez um acordo com empresários: querem sair dessa? Então vamos fazer assim. Eles emitiam papéis privados. Isso é a superpolitização da economia e a superautonomia do Estado em relação à sociedade civil. A economia do nazismo foi a estatização? Não. Foi, na verdade, a superprivatização da economia, com as forças do Estado, para preservar aquele bloco de empresas que estava ameaçado de destruição.

O que fazer agora? Estamos discutindo uma questão crucial no capitalismo hoje, que é a autonomia do Estado. Um economista chinês disse outro dia que a diferença é que o Estado chinês é autônomo. Se pode fazer o que quiser na China: comprar, vender, montar empresa, quebrar. Só não se pode dar palpite na política do governo.

Folha: O Estado chinês é autônomo porque tem o seu próprio sistema financeiro?

Ter o seu próprio sistema financeiro está entre os elementos da autonomia. Em segundo lugar, ele controla o comércio exterior e regula o câmbio.

No Brasil o Estado não é autônomo? Não, nunca foi. Houve momentos de uma certa autonomia. Com Getulio Vargas; com JK [Juscelino Kubitschek], menos. Getulio fez uma coisa: instituiu o confisco cambial, passou a mão nos excedentes de divisas do setor exportador para financiar a industrialização. O grande estadista brasileiro chama-se Getulio Vargas. Com todos os defeitos e qualidades que um estadista pode ter. Quem criou o Estado moderno brasileiro chama-se Getulio Vargas. O resto é tudo conversa mole.

AB. OK. Mas Beluzzo só não diz o seguinte: a partir do golpe de 1954, que derrubou Vargas, foi-se acabando o Estado brasileiro autônomo (não apenas o Estado moderno).

Folha: Hoje o governo está de mãos atadas em relação ao mercado financeiro?

O governo está perdendo a batalha para o mercado financeiro. Perdendo a batalha ideológica e política para o mercado financeiro. Porque as pessoas estão convencidas de que é fundamental se ter essa liberdade do mercado financeiro e dos bancos. O que é o mercado financeiro? É uma espécie de sistema nervoso da economia capitalista, porque recebe as informações e as transmite. O que ele faz hoje, não só no Brasil, mas em outras partes do mundo?

É um setor que é autorreferencial. Como diz o papa, ele se voltou para os seus próprios motivos e não tem nada a ver com o resto. É um setor macroeconomicamente importante, mas cujo funcionamento está voltado para o enriquecimento de suas próprias funções ou dos seus participantes. Virou autorreferencial.

Ele já não tem a função de irrigar a produção? As transformações no mercado financeiro fizeram com que ele deixasse de fazer a intermediação banco/empresa/investimento. Montam produtos que são do interesse deles. Por que eles resistem à intervenção no câmbio? A volatilidade cambial é boa? É péssima para a decisão de investimento. Mas para eles é ótimo, porque ficam arbitrando.

Folha: É um setor vital e intocável? Dilma, com seu capital político, não pode mexer?

Não é um setor intocável. É que precisa ter base política nessa correlação de forças. Como Roosevelt teve no New Deal.

Folha: E qual é a base política da Dilma?

É o pessoal mais desinformado sobre as razões dos problemas, que foi submetido a um processo de obscurecimento durante séculos. Olham o interesse imediato - e fazem muito bem. Vão fazer uma conjectura sobre política fiscal e monetária? Não vão. Estão respondendo ao imediato interesse deles. Estão percebendo que estão saindo de uma situação de desvantagem enorme. Que vai levar anos para se transformar numa situação de melhor igualdade. Você acha que o povo apoiou a revolução de 1964?

Não sabia o que estava se passando. Quem montou foi um grupelho. Dizer que foi obra dos militares é outro equívoco. Foi obra da assim chamada sociedade civil, que não suportava aquele negócio de reforma agrária. Agora eles não suportam. Além de se sentiram mal com um metalúrgico no poder, não suportam que o Estado faça certas coisas que precisam ser feitas para tornar a economia decente, para atender a emprego, saúde. Isso é que deveria interessar.

Folha: Com todas essas restrições, a Presidência não tem margem de atuação ou o que ocorre é uma capitulação ao "a vida é assim mesmo"?

Nem uma coisa nem outra. Isso não vai acabar agora. É uma luta política que ela esta travando em condições de desvantagem em relação ao mercado financeiro e suas forças associadas.

 E como Lula como se saiu nessa batalha? As condições de Lula eram outras. Havia um mundo exuberante – a exuberância que levou ao desastre. A economia tinha taxa de crescimento alentada. Apesar de a indústria estar com o câmbio valorizado, ainda havia capacidade de absorver uma parte da demanda que estava crescendo. Depois, acabou isso, e os problemas ficaram mais claros, expostos. Por que não desvalorizou o câmbio? Porque tem um risco de ter uma inflação fora de controle. Se você não tem uma base social capaz de te apoiar de maneira mais clara, sabendo o que isso implica, você perde força vis a vis os demais.

Não é uma questão de convencimento, de quem tem razão ou não. Na física, se pode demonstrar que uma teoria está descartada em razão de outra; há como comprovar, eliminar hipóteses experimentalmente. Em economia, não. Os interesses não se metem nas ciências naturais. No caso das ciências humanas, se metem. Na economia é onde mais se metem, por razões óbvias. Como disse Agamben, a economia é a religião do capitalismo. É uma coisa religiosa. Tem certas coisas que tem a força da religião.

Como o tripé? Como o tripé. A forma como alguns tratam o tripé é uma forma religiosa, parecida com o mistério da santíssima trindade. É tão fascinante para eles. Funciona muito mais como uma fé do que como uma convicção racional.

AB. Beluzzo critica essa regra do sistema como não-racional, mas a aceita, e até a discute, como fez em longos trechos da entrevista, como se fosse racional. Para ele é algo que você, digamos assim, filosoficamente, questiona, mas que deve considerar intocável na prática.

Dilma é a primeira a defender o tripé? Sabe por quê? Porque o tripé faz parte do consenso dominante. O cara não quer saber, quer falar do tripé. Todo o dia ele vai, ajoelha de manhã e reza para o tripé. Isso é o consenso. Precisamos de mais sociólogos e menos economistas. Precisava fazer uma análise sócio-psicológica desse fenômeno.

AB. Mais conversa para enrolar otários. O Brasil precisa, sim, de economistas, mas não desses, como ele, que se omitem no esclarecimento dos temas econômicos e ficam jogando a bola para gente de outras áreas, como se elas estivessem habilitadas para cumprir a função que cabe a eles aos economistas.  É como se os engenheiros se omitissem de construir e de manter instalações industriais e passassem essa tarefa para poetas ou técnicos de futebol.

Folha: E o investimento público? O governo alegou que iria reduzi-lo para dar espaço para o investimento privado. Isso faz sentido?

É a teoria do "crowding out", ou seja, que o investimento público expulsa o investimento privado.É certa essa teoria? Não. O investimento público, na história do Brasil, definiu o horizonte do investimento privado. Basta ver o papel das estatais no período de investimento rápido e o crescimento de todos os países. Vamos deixar de lado a Inglaterra que é um pouco mais complicado. Mas, assim mesmo, não teria capitalismo inglês sem o Estado inglês. O mercantilismo inglês foi o Estado. Nos EUA do final do século 19 ou na Alemanha há um peso devastador do Estado. Na Alemanha é muito mais claro. [Otto Von] Bismarck chamava o cara e dizia: você vai fazer uma estrada de ferro? Então compre o trilho aqui na Alemanha, porque isso é de interesse do povo alemão. Francamente, me recuso a discutir esse negócio de Estado ou não Estado. O Estado faz parte da engrenagem do capitalismo.

AB. Beluzzo recusa-se a discutir qualquer coisa que possa prejudicar sua imagem de bom moço perante os tais que determinam o que ele próprio chama de consenso dominante.

Folha: Por que Dilma reduziu o investimento público? O investimento está muito baixo desde os anos 1980. Subiu um pouquinho com Lula, mas está muito abaixo do que já foi e continua muito abaixo.

O governo não poderia investir mais e puxar o crescimento via investimento público? Ele está tentando fazer isso através das concessões.

Mas o governo tirou o pé do acelerador dos investimentos? Foi um erro? Eu acho. O investimento público é o estabilizador da economia. Não depende das expectativas do mercado. Ao contrário, é formador das expectativas do mercado. Ele é que devia ser mantido como regulador. É preciso voltar com a ideia de planejamento indicativo do governo. Não foi retomado por ninguém. FHC, com exceção do câmbio valorizado, comprou todas as recomendações do Consenso de Washington. Basta ver a chorumela do Gustavo Franco sobre a inserção da economia brasileira. Lula pegou a economia praticamente em estado de histeria. Fez a carta aos brasileiros.

Foi administrando, reproduziu o FHC nos primeiros anos, que foram ruins. Depois veio o efeito da China, ele surfou nessa onda. Fez direito, fez distribuição de renda, mas não mexeu na indústria e no câmbio. Veio a crise, e a reação do governo foi adequada. Depois, em vez de deixar o cambio em R$ 2,40, deixou deslizar de novo. Deixa o cambio em R$ 2,40! Estava ótimo e era meio caminho andado para avançar mais um pouco. A inflação tinha ido aos calcanhares. Eles ficaram animados com o próprio sucesso das medias que tomaram, cresceu 7,5%, em cima de um crescimento baixo. O mercado de trabalho tá apertado, mesmo com crescimento baixo. A taxa de desemprego caiu muito, por razões demográficas até. Há uma indústria que cresce pouco, sem melhoria de produtividade. Se cresce pouco, mantém o emprego, mas sua industria...

Folha: Mas a indústria está perdendo emprego? A indústria vai começar a perder emprego.

No conjunto, Dilma está mais próxima a FHC? Essa comparação é errada, porque as circunstâncias são diferentes. É como comparar FHC com Lula. Independentemente do discurso ideológico, FHC enfrentou quatro crises: a mexicana, a asiática, a russa e a do LTCM [Long-Term Capital Management]. A taxa Selic média foi de 20% ao ano. A dívida bruta voltou a 70% do PIB, porque a combinação câmbio/juros era desastrosa. Dilma pegou outra situação.

AB. Aparentemente Beluzzo atribui os desastres estruturais agravados por FHC à conjuntura mundial. Parece justificá-lo, como justifica a Lula e a Dilma.  Para ele, todos fizeram o que as circunstâncias permitiam.

Ela está à direita de Lula? O mercado acha que ela está à esquerda de Lula. Dizem que o Lula era legal porque conversava. Dizem que ela é a rabugenta, intervencionista e o diabo. A presidenta, coitada, herdou esse negócio e é muito difícil se desvencilhar disso. Ela está seguindo mais ou menos os cânones que são dominantes na percepção da economia. Se você quer dizer que ela deu uma recuada, isso significa que ela deu uma recuada. Deu uma recuada diante da correlação de forças.

AB. O que teria mudado na correlação de forças? Possivelmente é o seguinte: a cada presidente e a cada novo mandato presidencial, a correlação está pior para o governo e melhor para os concentradores financeiros, justamente porque os governos fazem cada vez mais concessões e, assim, seu poder relativo decresce cada vez mais.

Ela está lá meio desconfortável, fazendo o que ela pragmaticamente está vendo que deve fazer, não o que ela gostaria. Nem acho que a questão se coloque como mais ou menos intervenção. Se se tem um preço como esse, o câmbio, muito fora do lugar, numa situação internacional como essa, vai ter dificuldades de reativar essa economia. São duas as oportunidades que ela tem: acelerar as concessões e melhorar o investimento em infraestrutura, com efeito sobre a indústria, e o Pré-Sal. A menos que a China comece a crescer a não sei quanto. Coisa que não está no horizonte, porque eles estão mudando o modelo de crescimento deles.

AB. Ou seja: a saída para Beluzzo é aumentar ainda mais a característica do modelo dos últimos 50 e tantos anos: torná-lo cada vez mais dependente do setor “privado” (que não é privado, do ponto de vista do poder, mas tão somente da propriedade, pois tem poder público superior ao do Estado, e não é sequer nacional).  No mais, infra-estrutura em função do pré-sal e das importações feitas pela China significa acentuar ainda mais a primarização da economia e, portanto, a do modelo da dependência tecnológica e financeira.

Dilma é uma decepção ou está dentro do esperado? Ela está fazendo o que pode, coitada. O negócio é difícil. Sou suspeito porque me considero amigo dela; fui professor dela. Conversei com ela no início do ano. Ela nem sempre gostou das minhas opiniões durante o almoço. Ela tem as dela, com toda razão. Mas eu gosto dela. Acho que está fazendo o que pode. Esse negócio do tabelamento da taxa de retorno deu a impressão de uma intervenção. Pegou mal no mercado e era desnecessário. Produziu um desgaste muito grande, infelizmente, para ela. A partir daí o pessoal já projetou mil coisas, intervencionismo. Quase disseram que ela era uma réplica da política dos bolivarianos. Tem cabimento fazer essa comparação? Nada a ver.

AB. Não tem mesmo nada a ver. Os bolivarianos, Equador e Venezuela, fazem esforços e tomam medidas sérias com o objetivo de reduzir sua dependência das extorsões imperiais.

Folha: Mas isso não faz parte do jogo de força política, de fazer pressão, de tentar colocá-la contra a parede?

Sim, claro. É isso que eu estou dizendo o tempo inteiro. Estão botando ela contra a parede. Ela está tentando, à maneira dela, resistir. O governo se comunica mal.

Empresários devem saltar da campanha dela para outros candidatos, como Eduardo Campos, Marina, Aécio? Ninguém joga dinheiro fora.

Folha: Apesar desse ambiente atritado, os empresários não vão desembarcar?

É menos atrito e mais reclamação. É mais queixa do que um atrito. Eles já se deram conta de que uma coisa é a relação de forças no âmbito da economia; outra coisa é a relação de forças da política. Eles se deram conta de que ela vai ganhar. Eles vão compor com ela, e ela vai compor com eles, discutir. Isso é natural.

Mas os candidatos da oposição estão tentando atrair esse empresariado descontente, certo? Muitos têm ido a reuniões com eles. A Eduardo Campos um político muito qualificado, um jovem que tem muito futuro, muita chance. Não agora. Ele tem compromissos com essa coisa do desenvolvimento. Está no DNA dele. Ele recebeu a herança do avô [Miguel Arraes]. Agora é difícil ganhar dela. Sobretudo da candidata do Lula. Ela, pelas suas próprias razões, e ela é a candidata do Lula.

Mas ela está entregando menos que o Lula. Os indicadores sociais estão parados. Isso não interfere? As pessoas falam pouco de coisas importantes no governo dela, como o Minha Casa, Minha Vida, o avanço do Luz Para Todos, da continuidade do Bolsa Família e do avanço das políticas sociais. Isso pega a maioria da população. Dizem que as pessoas vão votar porque receberam uma esmola do governo. Nunca vi uma coisa tão bárbara. O que acham? Que o povo deve ficar no miserê, e o governo não deve fazer nada?

Mas os indicadores não pararam de melhorar? Não sei se deu uma parada. Na margem, estão crescendo menos. Está melhorando menos, porque a melhora foi muito intensa naquele período. É muito clara a sensação das pessoas de que elas melhoraram. No interior do Brasil, a sensação é maior. Tenho a Facamp, que é privada. Lá, os meninos que têm o Prouni escrevem: Agradeço ao presidente Lula e à presidente Dilma pela oportunidade que me deram. Isso pega nas famílias. Esse ódio que as pessoas têm... Uma fração da sociedade brasileira tem rejeição por essas pessoas, tem ódio das políticas sociais que foram levadas a cabo, acham que é assistencialismo.

Diante da situação social brasileira, que é uma desgraça e que vem de muitos anos, é melhor que a pessoa tenha o que comer, possa entrar numa universidade, mesmo que seja privada e de baixa qualidade, que elas se qualifiquem um pouco. Ou é melhor que fique jogada às baratas? Tá bom, ela está com dificuldade de levar adiante esse projeto, não está fácil. Mas eu não creio que ela tenha abandonado esse núcleo central. Muito ao contrário. Ela avançou um pouco nessa questão do Bolsa Família e de outros benefícios. A economia não cresce, não resolvemos o problema da indústria. E se não o resolvermos as coisas voltam para trás. É preciso dizer que as coisas voltam para trás, retrocedem.

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