Adriano Benayon (Doutor em Economia e Professor da Universidade de Brasília)
Recebi
o texto de entrevista recente do Prof. Luiz Gonzaga Beluzzo (concedida a
Eleonora de Lucena e publicada pela Folha
de São Paulo , no dia
29/12/2013, sob o título “Governo perde
batalha para o mercado financeiro, e País está sob camisa de 11 varas, diz
Beluzzo”).
Não
discordo da afirmação de que o País está em camisa de 11 varas.
Estou
transmitindo esse texto, entremeado por comentários meus, impressionado pelo
fato de um conceituado economista, que se diz desenvolvimentista, acatar, no
essencial, o que prescreve o sistema de poder
dos concentradores financeiros. Em suma, deixar de questionar os falsos
fundamentos dessas prescrições para a política econômica.
Só
me dei ao trabalho de fazer isso, porque o entrevistado faz parte de um
conjunto de economistas tido por crítico do neoliberalismo e das nefastas
políticas da equipe que comandou a área econômico-financeira nos oito anos da
presidência de FHC. Se a entrevista
fosse de Malan, Armínio Fraga, Bacha, Lara Resende, Pérsio Arida e outros desse
time talvez nem valesse a pena comentar, porque nesses casos são conhecidas as
vinculações de interesses que determinam as respectivas posições.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo - É um arranjo muito recente,
tem uns 20 anos no mundo. Virou uma espécie de procedimento ou de arcabouço de
política econômica. O fundamento é a teoria das expectativas racionais, que
ficou bastante abalada depois da crise. O ápice de prevalência do tripé foi no
período em que a inflação foi muito baixa. Há uma discussão se a inflação foi
muito baixa por causa do tripé ou se o tripé funcionou porque a inflação era
muito baixa. O comportamento da inflação tem a ver com outros fatores
relacionados com a mudança estrutural da economia mundial: o surgimento da China
e a liberalização financeira.
AB – Beluzzo não
fala das verdadeiras causas da inflação.
Aqui tivemos uma situação
singular: a valorização ajudou muito a conter a inflação durante um bom tempo.
Nunca conseguimos, com exceção de um ou dois anos, colocar a inflação na meta.
Lembre-se de que o Armínio [Fraga, ex-presidente do Banco Central, introdutor
do regime de metas] mudou a meta. A questão essencial é a interelação entre
essas três dimensões: a fiscal, a monetária propriamente dita, a política de
juros, e o cambio.
O
que diz o tripé? Quiseram manter câmbio flutuante, metas de inflação e
superávit primário. Problema 1: durante todo esse período, a flutuação do
câmbio se deu numa só direção, a da crescente tendência do real se valorizar.
Isso
[o tripé] não é uma regra: é modo de operar, um quadro de referência. Trata-se
de um jogo de coordenação desenvolvido dentro de certo arcabouço institucional,
de heranças do passado.
Como
diz Giorgio Agamben, que não é economista, é um filósofo: existem hoje dois
tipos de sociedade: uma, como as sociedades sociedade europeias, que têm
relações e preocupações com o seu passado e sua historia; outras que são
sociedades animalizadas. Não no sentido pejorativo.
São
aquelas que não têm passado nem história, porque os animais não têm historia.
Ele diz que os americanos são assim, e nós somos parecidos com os americanos.
Tudo parece que nasceu de repente. Isso facilita cuidar de uma coordenação
entre política monetária, fiscal e cambial de uma maneira abstrata, como se
fosse uma coisa implantada numa sociedade, como se fosse a mesma coisa que
aplicar os princípios da fissão nuclear no Brasil na Alemanha nos EUA. A ideia
de sociedade desaparece ai.
AB – A citação
desse tal de Giorgio Agamben toca as raias da ignorância, ainda mais lastimável
que a fustigada na imortal obra de Nicolau de Cusa (De docta ignorantia). Pois,
como qualificar a ideia preconceituosa e eurocentrista de considerar semelhantes
às dos animais as sociedades de países com história mais curta que a dos
europeus? Nesse caso, as dos europeus seriam animalescas em comparação às da
China, Índia e às do Oriente Próximo e muitas outras. Mas o que importa são as
atitudes, e não se vê os europeus reagindo como deveriam à destruição de sua
civilização por parte dos carteis transnacionais e da finança comandada pelos
centros financeiros angloamericanos.
Sou brasileiro, mas
penso conhecer da história europeia coisas importantes, que a maioria dos
europeus ignora, inclusive que a civilização européia entrou em declínio após
seu magnífico apogeu no século XVII, ainda continuado na música no XVIII.
Valorizar e aplicar as grandes lições da História não é privilégio dos
nacionais dos lugares onde elas foram produzidas.
Folha:O
Brasil tem o tripé desde 1999. Esse modelo deveria ser abandonado?
Não
acho que deva ser abandonado. É uma maneira de enquadrar ou organizar as
expectativas. Isso não quer dizer usar de uma maneira mecânica. Têm certas variáveis
que não se controla.
Folha: Alguns
propõem uma revisão. Por exemplo, que a meta de inflação seja bianual. O que o
sr. acha?
Isso
pode [ser feito], vários países fizeram. Também [há o debate] se a meta poderia
estar concentrada no núcleo da inflação etc. Isso tudo pode ser objeto de
discussão, de uma discussão minimamente racional.
Folha:
Quem aplica hoje o cerne do tripé? A China não aplica, certo?
A
China não aplica porque tem as normas dela. Tem uma política monetária e
cambial muito ligada à industrialização e às exportações. Já tiveram momentos
de pressão inflacionaria e foram muito firmes e não deixaram escapar,
resistiram. Não desvalorizaram para não afetar os países vizinhos.
A
crise asiática ocorreu nos países que tinham fundamentos em ótima situação, com
exceção do déficit em conta corrente. A crise asiática foi uma crise financeira
clássica. Já foi dito que os Bourbons não esqueciam de nada, mas não aprendiam
nada. Os economistas são descendentes dos Bourbons. Não se lembram de que essas
crises foram determinadas independentemente da situação da macroeconomia.
Digo
isso porque os países que têm moedas não conversíveis, como Brasil, México,
Rússia, China têm que estabelecer barreiras de defesa que são mais complexas do
que ter os fundamentos. A Espanha tinha uma situação fiscal maravilhosa antes
da crise. É muito parecido ao que aconteceu na Ásia. Havia superávit fiscal. A
economia estava explodindo, os salários e a receita estavam crescendo. Não
tinham problema cambial. Quando ocorreu a crise do euro reverteu tudo: o
déficit foi às alturas, e o governo teve que socorrer o setor privado.
Outra
questão é até que ponto o tripé é suficiente para garantir a estabilidade.
Quando falo estabilidade tenho calafrios. A noção de estabilidade é enganosa,
porque o capitalismo não é estável por definição.
Folha:
Mas existe vida além do tripé?
A
questão central é atenuar as flutuações e os custos. Alguém já disse que havia
uma crença no padrão ouro, que o ideal seria uma inflação muito próxima de zero
e o ouro seria uma âncora natural que conduziria a uma inflação próxima de
zero. É claro que a âncora não era natural coisa nenhuma. Porque o que regulava
aquelas economias era a taxa de juros do banco da Inglaterra. A moeda reserva
era a libra naquele acerto entre os países. Depois da Segunda Guerra, quando
todas as experiências de volta ao padrão ouro foram um desastre, a ideia não
era estabilizar o nível geral de preços, mas manter a inflação baixa.
A
política de metas esta enquadra nessa perspectiva: de manter a inflação baixa.
Baixa nos termos de permitir a movimentação dos preços relativos e organizar de
maneira adequada as expectativas dos empresários. De modo que eles montem seus
negócios de riqueza, de maneira a assegurar o investimento de longo prazo. Se
se deixar a inflação fugir de controle, já assistimos a esse filme: não há como
antecipar corretamente nada. Como [John Maynard] Keynes já disse, o futuro é
incerto e se tem que fazer uma aposta. Para fazer a aposta, é preciso ter um
mínimo de expectativa a respeito da evolução.
Folha:Por
que há o fetiche do tripé? Governo e oposição não querem mexer nisso.
Os países europeus só suspenderam as
restrições à movimentação de capital nos anos 1990, com a globalização
financeira. O tripé foi se construindo na medida em que foi avançando a
globalização financeira, o neoliberalismo. Isso já está na perspectiva criada
por [Margaret] Thatcher e pelo [Ronald] Reagan.
Eles
responderam a uma transformação que já estava ocorrendo no próprio capitalismo,
que estava tentando se desvencilhar daquela estagnação dos anos 1970. Veio a
teoria das expectativas racionais: o setor privado é sempre estável e o governo
é responsável pela instabilidade da economia. O mercado é o lócus do homem
racional. No fundo o que diz o tripé: atrapalhe o menos possível, não faça
intervenções indevidas.
Folha:O
tripé explica a estagnação de hoje? O governo Dilma está mais próximo do de FHC
do que de Lula?
Infelizmente,
em economia, não se tem respostas não ambíguas.
AB. Típica
generalização de economista em cima do muro...
Quando
Lula assumiu o tripé já estava de pé, com uma meta mais elevada. Lula navegou
nas benesses do ciclo de commodities, movido pela explosão da China e dos EUA –
chamo de modelo sino-americano: uns consomem e outros produzem. Aquela liquidez
internacional fantástica.
Tudo
isso ajudou a abrir espaço para fazer as políticas sociais. O tempo inteiro a
taxa de câmbio ficou valorizada, a exceção de 2008, quando foi a R$ 2,40. Mas
logo depois trataram de jogá-la para baixo. A indústria indo mal, por causa do
câmbio. Depois da crise, tivemos o "quantitative easing" [injeção de
liquidez pelos EUA], e o Brasil acumulou U$ 375 bilhões de reservas, um fato
inédito na história do Brasil. Veio uma política de desoneração, de facilitação
do consumo, de financiamento, ajudada lá trás pelo credito consignado, que
continuou.
O
que sustentou a recuperação foram as medidas adotadas na área creditícia e de
estímulo ao consumo. Essas políticas têm suas limitações. Não só por conta do
grau de endividamento das famílias, que subiu, mas não se nota índices de
inadimplência absurdos no Brasil. Ao contrario, é surpreendente que não sejam
tão absurdos. Isso foi o Lula. O governo Dilma começou com a taxa de câmbio bem
valorizada. Nos seus primeiros meses o dólar foi a R$ 1,60. Temos um
desequilíbrio fundamental entre todas as variáveis do tripé: a que se comportou
pior do ponto de vista do crescimento foi a taxa de câmbio.
O
fato de a economia brasileira ter mantido essa taxa de câmbio valorizada por
tanto tempo afetou o investimento industrial. Só um ingênuo acha que o sujeito
vai projetar uma fábrica com uma taxa de câmbio de R$ 2,40, que depois vai a R$
1,60, e volta para R$ 2, depois para R$ 1, 50. Tem clima para manter o
investimento? Não. O que a maioria dos industriais fez? Eles se tornaram
importadores. Há um processo de dessubstituição de exportações e de incentivo a
importações. Isso se criou por aqui e tem efeito sobre a taxa de crescimento. Qualquer
economista keynesiano razoável concorda que a política fiscal tem que ser
anticíclica.
O
objetivo dos detentores de riqueza é maximizar o ganho monetário. Não querem
maximizar o produto. O componente da demanda que é mais sujeito a flutuações é
o investimento. Porque se está fazendo uma aposta para montar aquela fábrica e
é preciso saber se ela vai realizar os rendimentos esperados. É preciso dar ao
setor privado um horizonte de segurança mais ou menos aceitável. É uma coisa
que os governos têm dificuldade de fazer. É preciso criar um espaço de
confiança que faça com que os empresários continuem investindo no ritmo
razoável.
Este
governo tem essa dificuldade? Tem. Porque num momento crucial, na discussão das
concessões, houve uma tentativa de fixar a taxa interna de retorno –o que já
foi debelado. Isso é um equívoco, não tem cabimento. Mas há certo exagero na
increpação de intervencionismo da presidente. Não tem nenhum aumento de
intervencionismo expressivo se comparado com o intervencionismo do governo
Lula. Ele fez políticas sociais usando recursos fiscais. Ela continua fazendo
isso.
Folha: Como
vai Dilma?
Dilma
se deu conta de que os efeitos da crise sobre o Brasil foram maiores do que se
podia pensar e duraram mais tempo. Nos metemos numa camisa de 11 varas, num
enrosco. O câmbio valorizado fez com que perdesse 200 e tantos bilhões de
dólares na balança comercial com exportação de manufaturados. Ter o câmbio
valorizado no momento em que a economia está deprimida e o comércio
internacional está crescendo em torno de 3%... As exportações da China
cresceram 12,5% no mês passado. Se apresentar isso a um cachorrinho ele vai
entender: evidentemente tem alguém pegando o mercado de alguém.
AB. Quem acha que o
Brasil se está desindustrializando principalmente por causa do câmbio, está só
justificando o sistema (não se importa nem com a infraestrutura nem com a
estrutura de mercado: concentrada ou competitiva; nacional ou súdita das
transnacionais.
Folha:Mas
quando Dilma assumiu a economia tinha crescido 7,5%, e ela puxou o freio de mão
em 2011. O governo provocou muito do que está aí. Não dá para culpar só o fator
externo, o sr. concorda?
Em
2011 o governo puxou o freio de mão de mais do crédito, e foi um erro. Foi um
erro do qual nós todos temos culpa. Estávamos preocupados com o desempenho
fiscal do governo e avaliamos mal. Eu inclusive. Estava errada aquela
avaliação.
Esse
debate sobre o tripé tem a ver com a formação de consensos entre os
economistas. Depende muito mais do poder de grupos da liderança de impor certas
questões vis a vis a outras. Por que a questão do câmbio, que para mim é
crucial, é deixada de lado?
Por
quê? Porque não há nenhum interesse em discutir essa questão do câmbio, porque
está muito bom assim.
Bom
para quem? Essa questão do câmbio envolve a discussão sobre movimento de
capitais, sobre a relação entre a moeda reserva e as moedas não conversíveis,
coisas que em boa medida estão fora do controle da gente.
Folha:O
governo poderia ter outra política cambial? Os próprios empresários não se
beneficiam dessa política?
Os
empresários se beneficiam porque a forma de funcionamento de acumulação das
empresas mudou. Hoje a avaliação da empresa se dá pelo Ebitda, que é o caixa da
empresa antes de juros, impostos etc. Converso com vários empresários que estão
vendendo suas empresas ou estão sendo estimulados a fazê-lo. A pergunta é
quantas vezes de Ebitda. O que eles precisam medir? O investimento fica muito
mais caro.
Folha:Então
o que importa mais é o resultado financeiro, o investimento é menos?
Sim.
O investimento fica custoso, porque mexe no caixa, no resultado. No mundo
inteiro ocorreu uma tremenda concentração em todos os setores. Essa
concentração agravou esse problema de controle dos mercados. Lawrence Summers
disse recentemente que o problema nos EUA é que as empresas estão acumulando
caixa e não investem. Daí a economia não vai.
Folha:
Quem no Brasil se beneficia dessa questão do câmbio?
No
Brasil, quem se beneficia é quem faz arbitragem com câmbio e juros, todo mundo
que tem capacidade financeira e articulações fora do Brasil para fazer isso. As
empresas pegam seu caixa e fazem posição no mercado futuro de juros e câmbio.
Folha:
Como vai essa perna do tripé?
Está
manca.
Folha:
O Brasil não poderia ter outra posição?
Tem
custos. Se deixou o câmbio se valorizar por muito tempo e temos uma defasagem
grande, calculo em 30% a defasagem. Há o custo do impacto na inflação.
Folha:
Esse impacto não é exagerado? Houve uma desvalorização e a inflação não subiu,
certo?
Mas
foi uma coisa muito cuidadosa. É preciso ir deslizando o câmbio. Porque se há
uma desvalorização abrupta, quebram empresas que estão endividadas em moeda
estrangeira. Se se deixa o câmbio se valorizar durante muitos anos, se muda o
"sourcing", o fornecimento, para fora. Foi o que aconteceu com
muitos. Temos hoje uma indústria importante de autopeças? Não. E as grandes
empresas de autopeças são também grandes empresas concentradas. Houve
concentração em cima, nas integradoras, e em embaixo. A indústria brasileira
ficou nanica nos últimos 30 anos, foi encolhendo.
Folha:
Tem salvação para a indústria?
O
Brasil vai ter que corrigir a política cambial. E impedir que uma eventual
subida da inflação coma a desvalorização real. É preciso fazer uma correção.
Não pode ficar dizendo que vai fazer, pois esse é um mercado onde os operadores
são muito rápidos na resposta. Mas o governo tem que buscar uma meta para o
câmbio.
Folha:Como
seria essa meta?
É
questão difícil de responder. Se eu dissesse que sei responder, estaria
mentindo. Se eu soubesse, estaria vendendo essa consultoria por aí e ganhando
dinheiro.
AB. O elemento não
sal desse assunto do câmbio; não cogita de medida alguma profunda, que possa
pôr em questão o capitalismo (concentrador, transnacional e desnacionalizador, implantado
há decênios no Brasil). Daí é só tirar o corpo fora, com tiradinhas
inteligentes.
Folha:
Em 2012, Dilma atacou as altas taxas de juros e pareceu adotar uma posição mais
firme em relação a bancos. Depois, os juros subiram. Houve retrocesso?
Em
termos. Isso é um jogo de vaivém. Como a inflação começou a bater no teto da
meta, e isso no consenso é uma coisa que... Disseram que o governo abandonou o
tripé, e isso virou ingrediente de uma batalha eleitoral. Na verdade, o governo
continuou administrando a política monetária e fiscal – que é a outra pata
fraca do tripé.
AB. Por acaso, a
monetária não é fraquíssima? Por que Beluzzo não a discute? Por que aí vige a
“inquestionável” supremacia dos bancos e dos concentradores financeiros em
geral usando o Tesouro, o BACEN como seus feudos.
E
isso tem a ver com o crescimento também. Se a economia cresce 1,5% ou 1%, é
claro que não se consegue um superávit de 3%. Nem a tapa, é impossível. Se pode
colocar Jesus Cristo. E tem muito Jesus Cristo por aí. Tem uma coleção de Jesus
Cristo na economia que eu fico impressionado. Deve impressionar até o próprio,
que deve ficar aturdido.
Tem
uma relação entre crescimento, superávit primário e a política monetária. Todas
são questões relacionadas com a natureza dos mercados financeiros. Temos aqui
uma enoooorme herança do período inflacionário, que é o volume de operações
compromissadas, que ficam no mercado de curtíssimo prazo monetário. Conseguimos
nos livrar do estoque de dívida que estava dolarizado, que é um grau de
liberdade. Mas agora precisamos lidar um pouquinho com essa questão do prazo e
da distribuição ao longo do tempo das aplicações financeiras.
AB. E que tal com
dívida pública, que tal com a questão de como o governo se pode financiar sem
endividar-se, que tal com as taxas de juros?
É
mais importante nesse momento, em vez de alongar, tentar uma política de
compras, de administração do mercado monetário, que afeta a tesouraria dos
bancos, com taxas de juros menores e às vezes com prazos mais curtos. Keynes
escreve depois da guerra, quando havia um problema de credibilidade da libra na
divida. Ele diz que o objetivo deve ser reduzir a taxa de juros, numa economia
que pretende crescer depois da guerra. Não fique com a cabeça que se tem que alongar,
que alongar é bom. Tem que administrar de modo a maximizar outro objetivo, que
é o crescimento. O tempo inteiro ele diz que nenhuma conclusão dogmática deve
ser tirada.
AB. Para que é
preciso invocar Keynes a toda hora - como se fosse pastor citando a Bíblia –
até para “sustentar” obviedades e lugares comuns, cuja relevância no contexto
não é central?
Folha:
Este governo não é muito dogmático em certos aspectos? Não há uma paranoia a
cerca da inflação?
Não
é do governo. Esse é o consenso que se estabeleceu muito mais entre os
economistas do mercado e a sua influência sobre a opinião publica. Se bem que a
opinião púbica, no Brasil, é uma coisa complicada. O que aconteceu é que o
governo não tem recursos de poder. Apesar dos U$ 375 bilhões [de reservas], ele
vai ter dificuldade de resistir, se os americanos mudarem a política monetária.
Vai
ter dificuldade porque dessa vez a ação da política monetária americana foi
muito intensa. Eles estão pensando até em fazer um sistema de recompra reversa,
para impedir que a taxa de juros suba muito quando eles tirarem os estímulos.
Porque isso pode ser contraproducente e pode abortar o crescimento modesto que
eles estão tendo agora. Em relação às moedas não conversíveis [como o real], o
impacto pode ser muito forte, se não houver defesas adequadas.
Folha:
O cenário da dita "tempestade perfeita", que é a combinação do fim
dos estímulos dos EUA com o rebaixamento da nota brasileira pelas agências de
classificação risco, está no horizonte, como diz Delfim Netto?
Não
concordo muito com essa ideia da tal tempestade perfeita. Meu amigo Delfim que
me perdoe. A mudança na política monetária americana vai ocorrer algum dia.
Janet Yellen que está lá.
Folha:
Mas o vice dela deve ser Stanley Fischer, que é mais ortodoxo, certo?
Se
se olhar a composição do Fed, vai haver certa resistência a tirar [os
estímulos] de uma maneira abrupta. Talvez se faça de uma maneira mais suave. [A
entrevista foi concedida na segunda-feira, 16/12; na quarta-feira seguinte,
18/12, o Fed anunciou redução suave dos estímulos, com manutenção de juro
próximo de zero.]
Porque
todo mundo se lembra da crise de 1994. Houve uma recessão em 1990-91, e fizeram
a mesma coisa: baixaram a taxa de juros para muito próximo de zero, abasteceram
de liquidez – não na proporção que ocorreu agora, Mas quando ele subiu, teve
uma tremenda crise. Teve gente que micou com aqueles papéis e o balanço virou uma
porcaria.
Então
essa transição agora deve ser mais gradual? Se houve alguém que aprendeu alguma
coisa com isso, vai fazer uma coisa mais gradual. Porque fazer uma coisa
"agora acabou"... aí a coisa vai ficar preta.
Por
que não a tempestade perfeita? Porque imagino que o governo deva estar se
preparando para a eventualidade que isso ocorra. Tem que preparar as defesas. O
Brasil, por exemplo, tem um acordo de swap de moeda com a China que pode
ajudar. Tem esse fundo de estabilização dos Brics, que também pode ajudar. É de
interesse da China. Se presta pouca atenção nessas negociações que fizemos com
a China. Isso nos provê de recursos que vão alem das reservas de U$ 375
bilhões. O compromisso é que esse fundo seja usado para impedir o ataque a
moedas dos países envolvidos. O governo tem que se preparar para isso, tomar
medidas de proteção ao mercado local.
Os
juros devem subir muito? Em todas as experiências, aponte uma em que se subiu o
juro com uma mudança desse tipo e que funcionou para segurar o dinheiro? Não
conheço nenhuma. É ineficaz. Quando se aumenta o juro, o que o cara fala: a
dívida publica desses caras vai para o beleléu e vou mesmo me mandar. O juro
não vai segurar. Em 1998/99, a taxa de juros foi a 40%, e o que aconteceu? A
turma continuou se mandando. Eu ligava a TV e via: saíram hoje U$ 3 bilhões...
E
a questão do rebaixamento é tão importante? Esse negócio do rebaixamento é um
exemplo cabal das redes de influência e das relações de poder. O que essas
agências de risco fizeram durante o período pré-crise – dando AAA para blocos
de ativos. É impressionante que as pessoas falem delas com o respeito que
continuam falando. Eles deveriam estar na cadeia. Num mundo sério, estavam
recolhidos ao xilindró. No entanto, eles continuam dando palpite.
Como
nos últimos anos 40 anos, sobretudo nos últimos 20 anos, o mercado de
securitização se ampliou muito. As instituições que vão adquirir esses papéis
precisam de informação sobre a qualidade dos papéis. Sugiram as agências de
avaliação de risco, que avalizam a qualidade do papel. Só que elas se
desmoralizaram completamente. Logo depois da crise, [Angela] Merkel e [Nicolas]
Sarkozy sugeriram a criação de uma empresa pública de avaliação de risco. Não
foi para frente, porque eles não tiveram força para fazer isso.
Folha:
O que está dando errado no governo Dilma? Por que está fracassando na economia,
com um crescimento medíocre, comprável ao de FHC?
Não acho que o governo esteja fracassando na
economia. O crescimento é ruim, comparável ao de FHC, que foi péssimo. Há esse
enrosco do câmbio, crescimento e juros. A política fiscal poderia facilitar a
política de juros, se houvesse uma situação fiscal mais estabilizada. O núcleo
do enrosco é o desalinhamento do câmbio, para um país que está metido nesse
mundo de hoje. Isso, que já era grave em outras circunstâncias, hoje é crucial
porque se tem um competidor temível [a
China].
AB. A China não
compete mais com o Brasil, mas, sim, principalmente com economias desenvolvidas
e de padrão tecnológico incomparavelmente superior ao do Brasil.
Durante
anos, o resultado do agronegócio cobriu o déficit da indústria, que esta em
déficit sistemático há cinco ou seis anos.
Folha:
Esse déficit dobrou no governo Dilma. Por quê?
Porque
se tem a acumulação de uma valorização com a crise. Na crise, o cara quer jogar
o excesso de capacidade dele em cima do mercado do outro. Por isso, dizer que a
crise não afeta o governo Dilma... De fato, a fase aguda da crise já passou.
Mas há as consequências estruturais da crise. Hoje o comercio internacional
está crescendo a 3%; a China, expandindo a 12%. E nós estamos a 2%. Só esse
diferencial dá o aumento do déficit.
AB. De novo,
enrolando. A crise só rebenta com os países cuja estrutura e infra-estrutura
foram moldadas segundo os interesses imperiais.
Folha:Com
o resultado do governo Dilma mais próximo do de FHC, onde está o
desenvolvimentismo?
No
debate, essa situação é apresentada como fracasso do desenvolvimentismo. Para
dizer a verdade, não sei direito de que desenvolvimentismo eles estão falando.
Dilma
não é desenvolvimentista? O que é desenvolvimentismo agora? É se colocar em
condições de competir nesse mercado desgraçado que está ai. Competir, avançar,
fazer acordos, crescer. O centro da turbulência está na inadequação do setor
externo, exportações e importações brasileiras na sustentação do crescimento. O
Brasil não vai ter um modelo "export led" [orientado para a
exportação]. O que foi a confiança do governo? Foi de que o mercado interno
iria se expandir, conforme se expandiu. Mas basicamente o crescimento é baixo
porque não há dinamismo na indústria.
AB. Sim, mas
Beluzzo esquiva-se de entrar em profundidade na questão relevante: por que não
há dinamismo na indústria.
Folha:
Ao contrário dos que dizem que o governo Dilma é o fracasso do desenvolvimentismo,
o crescimento é baixo porque as medidas tomadas por Dilma não são
desenvolvimentistas? O sr. concorda com essa avaliação?
Hoje
o desenvolvimentismo é uma palavra ambígua. Alguns falam em desenvolvimentismo
pensando nos anos 1950, 1960. Esquece. O ambiente internacional é outro, a
configuração da economia mundial é outra. É preciso procurar outros caminhos.
Temos algumas pontas importantes para que o desenvolvimento possa ser retomado.
Uma delas é o próprio agronegócio e o espírito empresarial que está lá. Pode-se
articular essa capacidade empresarial, estimulando que ela se mova para outros
setores, sobretudo mais próximos.
Folha:
Usar o agronegócio para industrializar?
Isso,
para participar na indústria de equipamentos agrícolas e na informática ligada
a eles, mecanização, por exemplo.
Como
os capitais do café que, no passado, foram para a indústria?
Sim, fazer o que os australianos fizeram o
tempo inteiro. A segunda [oportunidade] está relacionada com o pré-sal, que tem
um modelo muito bom, o regime de partilha.
AB. Realmente o
homem está alinhado com o sistema.
Folha: O
que o sr. achou do leilão da Petrobras?
Foi
ótimo. Muitos acham que a Petrobras podia tocar sozinha, eu acho que não, que o
volume de investimento é muito pesado. Precisa partilhar. Nesse mundo de hoje,
não se pode repetir um nacionalismo dos anos 1950, 1960. Não há condições, se
você quiser participar desse jogo.
AB. Discurso típico
de entreguista. Não se trata de repetir coisa alguma dos anos 50 ou 60: nem o
nacionalismo de então, nem o entreguismo que acabou prevalecendo (não admira
que Beluzzo considere JK desenvolvimentista, e só falta considerá-lo
nacionalista!). Trata-se de viabilizar o real desenvolvimento, que não é
realizável em consonância com o que desejam as potências imperiais e seus
porta-vozes e homens de palha locais.
A
China não faz isso? A China se vale da entrada de capitais. Foi o país que
melhor aproveitou, com políticas de interesse nacional, o neoliberalismo dos
ricos. Parece um paradoxo, mas não é. Fez uma integração muito inteligente.
AB. Beluzzo ou se
faz de idiota ou nos considera como tal. A abertura da China não envolveu
privatizações, até hoje a moeda e do crédito estão predominantemente, se não
quase totalmente, nas mãos do Estado, às transnacionais admitidas na indústria
não foi facilitado dominarem o mercado local e, ao contrário do que ocorre no
Brasil, essas transnacionais foram obrigadas a entrar com capital e a transferir
tecnologia. No Brasil, elas esvaziam o País de capital e o fazem pagar por
tecnologia jamais absorvida por ele. E por aí vai.
Por
que isso não ocorreu no Brasil? Porque quando foram ocorrendo as mudanças
tecnológicas e na geoeconomia mundial, o Brasil estava metido na crise da
dívida externa.
AB. Não é assim,
sr. Beluzzo: o Brasil deu subsídios fenomenais para que as transnacionais das
potências hegemônicas controlassem a produção industrial e outras no País, e
foi isso que causou a escalada da dívida. A dívida não nasceu e cresceu antes
da entrada das transnacionais, mas, sim, em consequência dessa entrada.
Lá
nos anos 1980? Quando as importações sobre o PIB chegaram a 3%! Foi um
fechamento forçado.
AB. Com outra
estrutura econômica e com governo autônomo, esse fechamento teria sido uma
benesse para o desenvolvimento de indústrias e tecnologias.
Porque
não tinha dólar, o país estava quebrado? Quebrou. No Brasil, é o negócio da
animalidade. O sujeito não liga [o que ocorre hoje] com o que aconteceu com o
passado. Durante todos os anos 1970, nós dizíamos que aquele padrão de
financiamento ia dar confusão, que ele só sobreviveria enquanto os americanos
não tentassem recompor a força do dólar. Quando eles tentaram, quebraram a
gente. Parece que os anos 1980 surgiram do nada, caíram de Marte!
AB. Não se tratava de questão setorial, mas, sim, do padrão geral da industrialização brasileira, um padrão fadado ao fracasso, em função da dependência financeira e tecnológica em que foi montado, desde o golpe de 1954, com a política de investimentos estrangeiros desenhada por Eugênio Gudin, Otávio Bulhões e outros “apaixonados” pela City de Londres pela City de Londres e pelos amigos dela, norte-americanos e europeus.. Roberto Campos não emergiu do nada em 1964, ele fez parte do governos de JK e de Goulart.
Folha:
Dilma é desenvolvimentista?
A
Dilma é desenvolvimentista, só que não está conseguindo se livrar desses
constrangimentos que vêm dos anos 1970 para cá. Ela recebeu a taxa de câmbio
valorizada. Fez um esforço para desvalorizar. Porém, a inflação bateu no teto
da meta. O que o BC fez e tinha que fazer? Subiu a taxa de juros.
AB. Beluzzo
considera desenvolvimentista (o que é isso?), quem ignora a estrutura e a
infra-estrutura e a autonomia financeira do Tesouro e sua supremacia sobre um
banco central governado pelos banqueiros e com a Constituição garantindo a
estes a mamata dos títulos do Tesouro. Considera desenvolvimentista quem só
trabalha com as ferramentas bem vistas pelo “mercado financeiro” , i.e., os
concentradores financeiros.
Tinha
que fazer? Tinha. É preciso avaliar o que custa mais. Não tem regra. Se se
perde o controle da inflação, ela vai para 7%, 8%, o risco de ela ir para 10% é
muito maior. Não dá para num país que teve essa experiência hiperinflacionaria
dar a sensação de que se está largando mão da inflação.
AB. Beluzzo
acredita na estória de que a taxa de juros é
instrumento capaz de conter a alta dos preços.
Depois
de verbalizar uma posição mais firme em relação ao sistema financeiro, Dilma
recuou? Ela foi enquadrada pelo sistema financeiro?
Não
é que ela foi enquadrada. Essa palavra supõe.... Há um problema de relação de
força. Não é saber quem tem razão. É saber quem tem mais poder de fogo, quem
tem mais força.
Folha:
Quem tem mais força: o mercado financeiro ou Presidência da República?
O
mercado financeiro. No mundo inteiro. Ou se acha que os europeus fazem isso
porque acham engraçado? É por que eles entregaram a rapadura.
AB. Veja-se o que é
a mentalidade entreguista. Para Beluzzo, o mundo inteiro significa o eixo
imperial Londres-EUA e os que seguem as regras imperiais entre os desenvolvidos
e os demais países. Para ele, não fazem parte do mundo: China, Rússia e um
grande número de países que não seguem in totu essas regras.
Folha:
Entregaram a rapadura para o mercado financeiro?
Sim,
porque não se pode mexer naquilo que é essencial.
AB. Aí está a
declaração de allegiance total às
regras imperiais: enunciar a equação entre essas regras e o que é essencial,
i.e., aquilo de que não nos devemos afastar de forma alguma.
Folha:
O que é essencial? Não deveria ser emprego, salário, bem-estar da população? É
o sistema financeiro?
O
essencial é o emprego, a renda, o bem-estar das pessoas. Mas estou dizendo que,
nesse caso e depois de uma crise dessas proporções, houve uma inversão nas
relações de poder se se comparar com os anos 1930. Porque nos anos 1930, o
[Franklin] Roosevelt... Pam! Deu um murro na mesa, limpou e disse chega. Assim
mesmo a economia foi devagar. O [Adolf] Hitler não só disse chega, como, no
fundo, ele estatizou o crédito. Criou a Mefo, uma empresa privada para escapar
do financiamento direto do tesouro das obras. O desemprego na Alemanha chegou a
43%; nos EUA foi 27%. Roosevelt sofreu oposição de todos os lados, inclusive da
corte suprema.
Perdeu
várias questões na corte suprema, sobre as primeiras instituições do New Deal.
Ele foi costurando pelas beiradas. Hitler, não. Falou, é o seguinte: vão
reconstruir a economia alemã. Criou essa Mefo, e um sistema de controle de
preços duríssimo. No fundo, fez um acordo com empresários: querem sair dessa?
Então vamos fazer assim. Eles emitiam papéis privados. Isso é a
superpolitização da economia e a superautonomia do Estado em relação à
sociedade civil. A economia do nazismo foi a estatização? Não. Foi, na verdade,
a superprivatização da economia, com as forças do Estado, para preservar aquele
bloco de empresas que estava ameaçado de destruição.
O
que fazer agora? Estamos discutindo uma questão crucial no capitalismo hoje,
que é a autonomia do Estado. Um economista chinês disse outro dia que a
diferença é que o Estado chinês é autônomo. Se pode fazer o que quiser na
China: comprar, vender, montar empresa, quebrar. Só não se pode dar palpite na
política do governo.
Folha:
O Estado chinês é autônomo porque tem o seu próprio sistema financeiro?
Ter
o seu próprio sistema financeiro está entre os elementos da autonomia. Em
segundo lugar, ele controla o comércio exterior e regula o câmbio.
No
Brasil o Estado não é autônomo? Não, nunca foi. Houve momentos de uma certa
autonomia. Com Getulio Vargas; com JK [Juscelino Kubitschek], menos. Getulio
fez uma coisa: instituiu o confisco cambial, passou a mão nos excedentes de
divisas do setor exportador para financiar a industrialização. O grande
estadista brasileiro chama-se Getulio Vargas. Com todos os defeitos e
qualidades que um estadista pode ter. Quem criou o Estado moderno brasileiro
chama-se Getulio Vargas. O resto é tudo conversa mole.
AB. OK. Mas Beluzzo só não diz o seguinte: a partir do golpe de 1954, que derrubou Vargas, foi-se acabando o Estado brasileiro autônomo (não apenas o Estado moderno).
Folha:
Hoje o governo está de mãos atadas em relação ao mercado financeiro?
O governo está perdendo a batalha para o
mercado financeiro. Perdendo a batalha ideológica e política para o mercado
financeiro. Porque as pessoas estão convencidas de que é fundamental se ter
essa liberdade do mercado financeiro e dos bancos. O que é o mercado
financeiro? É uma espécie de sistema nervoso da economia capitalista, porque
recebe as informações e as transmite. O que ele faz hoje, não só no Brasil, mas
em outras partes do mundo?
É
um setor que é autorreferencial. Como diz o papa, ele se voltou para os seus
próprios motivos e não tem nada a ver com o resto. É um setor
macroeconomicamente importante, mas cujo funcionamento está voltado para o
enriquecimento de suas próprias funções ou dos seus participantes. Virou autorreferencial.
Ele
já não tem a função de irrigar a produção? As transformações no mercado
financeiro fizeram com que ele deixasse de fazer a intermediação
banco/empresa/investimento. Montam produtos que são do interesse deles. Por que
eles resistem à intervenção no câmbio? A volatilidade cambial é boa? É péssima
para a decisão de investimento. Mas para eles é ótimo, porque ficam arbitrando.
Folha:
É um setor vital e intocável? Dilma, com seu capital político, não pode mexer?
Não
é um setor intocável. É que precisa ter base política nessa correlação de
forças. Como Roosevelt teve no New Deal.
Folha:
E qual é a base política da Dilma?
É
o pessoal mais desinformado sobre as razões dos problemas, que foi submetido a
um processo de obscurecimento durante séculos. Olham o interesse imediato - e
fazem muito bem. Vão fazer uma conjectura sobre política fiscal e monetária?
Não vão. Estão respondendo ao imediato interesse deles. Estão percebendo que
estão saindo de uma situação de desvantagem enorme. Que vai levar anos para se
transformar numa situação de melhor igualdade. Você acha que o povo apoiou a
revolução de 1964?
Não
sabia o que estava se passando. Quem montou foi um grupelho. Dizer que foi obra
dos militares é outro equívoco. Foi obra da assim chamada sociedade civil, que
não suportava aquele negócio de reforma agrária. Agora eles não suportam. Além
de se sentiram mal com um metalúrgico no poder, não suportam que o Estado faça
certas coisas que precisam ser feitas para tornar a economia decente, para
atender a emprego, saúde. Isso é que deveria interessar.
Folha:
Com todas essas restrições, a Presidência não tem margem de atuação ou o que
ocorre é uma capitulação ao "a vida é assim mesmo"?
Nem
uma coisa nem outra. Isso não vai acabar agora. É uma luta política que ela
esta travando em condições de desvantagem em relação ao mercado financeiro e
suas forças associadas.
Não
é uma questão de convencimento, de quem tem razão ou não. Na física, se pode
demonstrar que uma teoria está descartada em razão de outra; há como comprovar,
eliminar hipóteses experimentalmente. Em economia, não. Os interesses não se
metem nas ciências naturais. No caso das ciências humanas, se metem. Na
economia é onde mais se metem, por razões óbvias. Como disse Agamben, a
economia é a religião do capitalismo. É uma coisa religiosa. Tem certas coisas
que tem a força da religião.
Como
o tripé? Como o tripé. A forma como alguns tratam o tripé é uma forma
religiosa, parecida com o mistério da santíssima trindade. É tão fascinante
para eles. Funciona muito mais como uma fé do que como uma convicção racional.
AB. Beluzzo critica
essa regra do sistema como não-racional, mas a aceita, e até a discute, como
fez em longos trechos da entrevista, como se fosse racional. Para ele é algo
que você, digamos assim, filosoficamente, questiona, mas que deve considerar
intocável na prática.
Dilma
é a primeira a defender o tripé? Sabe por quê? Porque o tripé faz parte do
consenso dominante. O cara não quer saber, quer falar do tripé. Todo o dia ele
vai, ajoelha de manhã e reza para o tripé. Isso é o consenso. Precisamos de
mais sociólogos e menos economistas. Precisava fazer uma análise sócio-psicológica
desse fenômeno.
AB. Mais conversa
para enrolar otários. O Brasil precisa, sim, de economistas, mas não desses, como
ele, que se omitem no esclarecimento dos temas econômicos e ficam jogando a
bola para gente de outras áreas, como se elas estivessem habilitadas para
cumprir a função que cabe a eles aos economistas. É como se os engenheiros se omitissem de
construir e de manter instalações industriais e passassem essa tarefa para
poetas ou técnicos de futebol.
Folha:
E o investimento público? O governo alegou que iria reduzi-lo para dar espaço
para o investimento privado. Isso faz sentido?
É
a teoria do "crowding out", ou seja, que o investimento público expulsa
o investimento privado.É certa essa teoria? Não. O investimento público, na
história do Brasil, definiu o horizonte do investimento privado. Basta ver o
papel das estatais no período de investimento rápido e o crescimento de todos
os países. Vamos deixar de lado a Inglaterra que é um pouco mais complicado.
Mas, assim mesmo, não teria capitalismo inglês sem o Estado inglês. O
mercantilismo inglês foi o Estado. Nos EUA do final do século 19 ou na Alemanha
há um peso devastador do Estado. Na Alemanha é muito mais claro. [Otto Von]
Bismarck chamava o cara e dizia: você vai fazer uma estrada de ferro? Então
compre o trilho aqui na Alemanha, porque isso é de interesse do povo alemão.
Francamente, me recuso a discutir esse negócio de Estado ou não Estado. O
Estado faz parte da engrenagem do capitalismo.
AB. Beluzzo recusa-se a discutir qualquer coisa que possa prejudicar sua imagem de bom moço perante os tais que determinam o que ele próprio chama de consenso dominante.
Folha:
Por que Dilma reduziu o investimento público? O investimento está muito baixo
desde os anos 1980. Subiu um pouquinho com Lula, mas está muito abaixo do que já
foi e continua muito abaixo.
O
governo não poderia investir mais e puxar o crescimento via investimento
público? Ele está tentando fazer isso através das concessões.
Mas
o governo tirou o pé do acelerador dos investimentos? Foi um erro? Eu acho. O
investimento público é o estabilizador da economia. Não depende das
expectativas do mercado. Ao contrário, é formador das expectativas do mercado.
Ele é que devia ser mantido como regulador. É preciso voltar com a ideia de
planejamento indicativo do governo. Não foi retomado por ninguém. FHC, com
exceção do câmbio valorizado, comprou todas as recomendações do Consenso de
Washington. Basta ver a chorumela do Gustavo Franco sobre a inserção da
economia brasileira. Lula pegou a economia praticamente em estado de histeria.
Fez a carta aos brasileiros.
Foi
administrando, reproduziu o FHC nos primeiros anos, que foram ruins. Depois
veio o efeito da China, ele surfou nessa onda. Fez direito, fez distribuição de
renda, mas não mexeu na indústria e no câmbio. Veio a crise, e a reação do
governo foi adequada. Depois, em vez de deixar o cambio em R$ 2,40, deixou
deslizar de novo. Deixa o cambio em R$ 2,40! Estava ótimo e era meio caminho
andado para avançar mais um pouco. A inflação tinha ido aos calcanhares. Eles
ficaram animados com o próprio sucesso das medias que tomaram, cresceu 7,5%, em
cima de um crescimento baixo. O mercado de trabalho tá apertado, mesmo com
crescimento baixo. A taxa de desemprego caiu muito, por razões demográficas
até. Há uma indústria que cresce pouco, sem melhoria de produtividade. Se
cresce pouco, mantém o emprego, mas sua industria...
Folha:
Mas a indústria está perdendo emprego? A indústria vai começar a perder
emprego.
No
conjunto, Dilma está mais próxima a FHC? Essa comparação é errada, porque as
circunstâncias são diferentes. É como comparar FHC com Lula. Independentemente
do discurso ideológico, FHC enfrentou quatro crises: a mexicana, a asiática, a
russa e a do LTCM [Long-Term Capital Management]. A taxa Selic média foi de 20%
ao ano. A dívida bruta voltou a 70% do PIB, porque a combinação câmbio/juros
era desastrosa. Dilma pegou outra situação.
AB. Aparentemente
Beluzzo atribui os desastres estruturais agravados por FHC à conjuntura
mundial. Parece justificá-lo, como justifica a Lula e a Dilma. Para ele, todos fizeram o que as
circunstâncias permitiam.
Ela
está à direita de Lula? O mercado acha que ela está à esquerda de Lula. Dizem
que o Lula era legal porque conversava. Dizem que ela é a rabugenta,
intervencionista e o diabo. A presidenta, coitada, herdou esse negócio e é
muito difícil se desvencilhar disso. Ela está seguindo mais ou menos os cânones
que são dominantes na percepção da economia. Se você quer dizer que ela deu uma
recuada, isso significa que ela deu uma recuada. Deu uma recuada diante da
correlação de forças.
AB. O que teria
mudado na correlação de forças? Possivelmente é o seguinte: a cada presidente e
a cada novo mandato presidencial, a correlação está pior para o governo e
melhor para os concentradores financeiros, justamente
porque os governos fazem cada vez mais concessões e, assim, seu poder relativo
decresce cada vez mais.
Ela
está lá meio desconfortável, fazendo o que ela pragmaticamente está vendo que
deve fazer, não o que ela gostaria. Nem acho que a questão se coloque como mais
ou menos intervenção. Se se tem um preço como esse, o câmbio, muito fora do
lugar, numa situação internacional como essa, vai ter dificuldades de reativar
essa economia. São duas as oportunidades que ela tem: acelerar as concessões e
melhorar o investimento em infraestrutura, com efeito sobre a indústria, e o
Pré-Sal. A menos que a China comece a crescer a não sei quanto. Coisa que não
está no horizonte, porque eles estão mudando o modelo de crescimento deles.
AB. Ou seja: a
saída para Beluzzo é aumentar ainda mais a característica do modelo dos últimos
50 e tantos anos: torná-lo cada vez mais dependente do setor “privado” (que não
é privado, do ponto de vista do poder, mas tão somente da propriedade, pois tem
poder público superior ao do Estado, e não é sequer nacional). No mais, infra-estrutura em função do pré-sal
e das importações feitas pela China significa acentuar ainda mais a
primarização da economia e, portanto, a do modelo da dependência tecnológica e
financeira.
Dilma
é uma decepção ou está dentro do esperado? Ela está fazendo o que pode,
coitada. O negócio é difícil. Sou suspeito porque me considero amigo dela; fui
professor dela. Conversei com ela no início do ano. Ela nem sempre gostou das
minhas opiniões durante o almoço. Ela tem as dela, com toda razão. Mas eu gosto
dela. Acho que está fazendo o que pode. Esse negócio do tabelamento da taxa de
retorno deu a impressão de uma intervenção. Pegou mal no mercado e era
desnecessário. Produziu um desgaste muito grande, infelizmente, para ela. A
partir daí o pessoal já projetou mil coisas, intervencionismo. Quase disseram
que ela era uma réplica da política dos bolivarianos. Tem cabimento fazer essa
comparação? Nada a ver.
AB. Não tem mesmo
nada a ver. Os bolivarianos, Equador e Venezuela, fazem esforços e tomam
medidas sérias com o objetivo de reduzir sua dependência das extorsões
imperiais.
Folha:
Mas isso não faz parte do jogo de força política, de fazer pressão, de tentar
colocá-la contra a parede?
Sim,
claro. É isso que eu estou dizendo o tempo inteiro. Estão botando ela contra a
parede. Ela está tentando, à maneira dela, resistir. O governo se comunica mal.
Empresários
devem saltar da campanha dela para outros candidatos, como Eduardo Campos,
Marina, Aécio? Ninguém joga dinheiro fora.
Folha:
Apesar desse ambiente atritado, os empresários não vão desembarcar?
É
menos atrito e mais reclamação. É mais queixa do que um atrito. Eles já se
deram conta de que uma coisa é a relação de forças no âmbito da economia; outra
coisa é a relação de forças da política. Eles se deram conta de que ela vai
ganhar. Eles vão compor com ela, e ela vai compor com eles, discutir. Isso é
natural.
Mas
os candidatos da oposição estão tentando atrair esse empresariado descontente,
certo? Muitos têm ido a reuniões com eles. A Eduardo Campos um político muito
qualificado, um jovem que tem muito futuro, muita chance. Não agora. Ele tem
compromissos com essa coisa do desenvolvimento. Está no DNA dele. Ele recebeu a
herança do avô [Miguel Arraes]. Agora é difícil ganhar dela. Sobretudo da
candidata do Lula. Ela, pelas suas próprias razões, e ela é a candidata do
Lula.
Mas
ela está entregando menos que o Lula. Os indicadores sociais estão parados. Isso
não interfere? As pessoas falam pouco de coisas importantes no governo dela,
como o Minha Casa, Minha Vida, o avanço do Luz Para Todos, da continuidade do
Bolsa Família e do avanço das políticas sociais. Isso pega a maioria da
população. Dizem que as pessoas vão votar porque receberam uma esmola do
governo. Nunca vi uma coisa tão bárbara. O que acham? Que o povo deve ficar no
miserê, e o governo não deve fazer nada?
Mas
os indicadores não pararam de melhorar? Não sei se deu uma parada. Na margem,
estão crescendo menos. Está melhorando menos, porque a melhora foi muito
intensa naquele período. É muito clara a sensação das pessoas de que elas
melhoraram. No interior do Brasil, a sensação é maior. Tenho a Facamp, que é
privada. Lá, os meninos que têm o Prouni escrevem: Agradeço ao presidente Lula
e à presidente Dilma pela oportunidade que me deram. Isso pega nas famílias.
Esse ódio que as pessoas têm... Uma fração da sociedade brasileira tem rejeição
por essas pessoas, tem ódio das políticas sociais que foram levadas a cabo,
acham que é assistencialismo.
Diante
da situação social brasileira, que é uma desgraça e que vem de muitos anos, é
melhor que a pessoa tenha o que comer, possa entrar numa universidade, mesmo
que seja privada e de baixa qualidade, que elas se qualifiquem um pouco. Ou é
melhor que fique jogada às baratas? Tá bom, ela está com dificuldade de levar
adiante esse projeto, não está fácil. Mas eu não creio que ela tenha abandonado
esse núcleo central. Muito ao contrário. Ela avançou um pouco nessa questão do
Bolsa Família e de outros benefícios. A economia não cresce, não resolvemos o
problema da indústria. E se não o resolvermos as coisas voltam para trás. É preciso
dizer que as coisas voltam para trás, retrocedem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário