*Manuel Cambeses Júnior
O
fenômeno da globalização é algo relativamente recente no acontecer mundial. Não
existe dúvida de que a alta tecnologia, as comunicações instantâneas, e a
imbricação da economia em escala planetária, conduzem a fazer do planeta uma
unidade mais entrelaçada, complexa e interrelacionada.
Também
é um fato significativo que tal acontecimento tem efeitos em todas as áreas da
vida social e, sensivelmente, na economia. É fora de dúvida que a globalização
em si mesma é um progresso da qual nenhum país poderá escapar e algo
irreversível. Porém, ao aceitarmos simplesmente esta constatação, não podemos
admitir, necessariamente, que todas as suas consequências devam projetar-se em
uma só direção, a qual, até agora, parece beneficiar basicamente a alguns
países e prejudicar a muitos outros.
Na
globalização existem ganhadores e perdedores porque entre os países desenvolvidos
se está criando uma mentalidade em muitos sentidos excludente, e que não
interpreta todos os fatores que entram no tabuleiro deste intrincado jogo.
Tais
fatos podem produzir desequilíbrios internacionais capazes de conduzir o mundo
a dificuldades maiores do que as que se conheceram durante o período da Guerra
Fria.
É
uma tremenda ingenuidade pensar que o final da Guerra Fria abriu as perspectivas
de um paraíso para a humanidade. Pelo contrário, estão sendo geradas intensas
contradições que poderão multiplicar os conflitos no alvorecer deste século e
tornar mais difícil a vida para grande parte do gênero humano.
Por
esse motivo é necessário que os países em desenvolvimento tenham claras as
noções de interesse nacional. Em muitos casos pode haver tendência a uma
"globalização ingênua" e a um "internacionalismo-irmão".
Essa
posição se alimenta na ideia de que existe uma espécie de progresso linear que
automaticamente produzirá benefícios pelo simples fato de inscrever-se no
"clube da globalização". Esquece-se, dessa maneira, que nesse clube
existem membros de primeira classe, vários de segunda, muitos da terceira e
inúmeros outros na lista de espera.
A
"globalização ingênua" pode conduzir-nos a erros fundamentais. O primeiro
deles é o de prescindir do interesse nacional e do papel que os Estados e os
governos nacionais têm que assumir para defender os interesses dos países que
representam. É muito bom o diálogo, as negociações, as aberturas de mercado e
todos os demais benefícios que produz o desenvolvimento tecnológico e
comunicacional. Porém, dentro da complexa arquitetura desse jogo, temos alguns
interesses a defender, uma posição a assumir e uma atitude a vigiar
constantemente.
Há
alguns anos li um livro que me intrigou profundamente. Está escrito por um
homem sobejamente conhecido no cenário internacional, Kenichi Ohmae, cujo
título é “The End of the Nation State”. É um livro inteligente, porém seus
delineamentos e conclusões poderiam nos levar a admitir postulados que
conduziriam ao prejuízo dos interesses dos povos e das nações menos desenvolvidas.
Os argumentos são muito bons para defender a posição dos países poderosos,
porém inconsistentes para assumir a tribuna dos menos aquinhoados.
Um
dos argumentos que agora se costuma alardear é de que os Estados são apenas
referências cartográficas dentro da estrutura geopolítica do planeta. Isso, em
termos técnicos e comunicacionais, pode ser considerado correto. Porém, a
realidade humana é outra. Os Estados estão formados por seres humanos que
deveriam estar representados e encarnados por eles, mas sabemos que, muitas
vezes, não é assim que as coisas ocorrem.
Entretanto,
é importante enfatizar essa dimensão histórica do Estado nacional: um elo entre
as pessoas e a ordem política. Existe uma tecnocracia apátrida que voa sobre as
fronteiras e possui fórmulas sintéticas e paradigmáticas para todas as
realidades nacionais. Grande parte da crise financeira de hoje, que acomete os
Estados Unidos e vários países da Europa, se deve a que as tecnocracias,
particularmente aquelas que influem nas instituições econômicas e financeiras internacionais,
não possuem um pensamento histórico das realidades que manejam.
Administram
fórmulas, abstrações e jogam com os números e os deslocamentos financeiros sem
ter em conta que a base de toda essa circulação financeira internacional está
apoiada em complexas comunidades nacionais que têm seu direito a viver, suas
expectativas ante o mundo, uma cultura e uma história que defender e preservar
e uma lógica aspiração à dignidade e à reciprocidade.
Com
a crise estadunidense ficou bem evidenciado que os mecanismos financeiros não
se autorregulam, como ingenuamente alguns vinham pretendendo; que neles
intervêm fatores psicológicos e políticos e que, ao final das contas, os
árbitros não podem ser os interesses internacionais e sim os povos que elegem
os seus governantes.
Outro
efeito da globalização ingenuamente aceito é o que supõe que o fato de
proclamar a "adesão ao clube" pressupõe, automaticamente, a conquista
do bem-estar. Para globalizar-se é necessário desenvolver certas capacidades
nacionais, a formação de recursos humanos, as infraestruturas básicas, a
instantaneidade nas comunicações e todo um sistema cultural que lhe apoie e
proporcione sustentação aos efeitos da globalização.
Para
criar competição e competência é imprescindível preparar as pessoas, administrar
inteligentemente a formação do capital humano e dar-lhe mística, entusiasmo e
estímulo para que entenda que a riqueza se alicerça, fundamentalmente, na
capacidade das pessoas. Para ser competitivo é preciso ser capaz e para atingir
a capacidade é necessário preparar-se e assumir o objetivo fundamental da
educação, em bases totalmente distintas das que prevalecem na atualidade.
Porém,
também existem requisitos políticos para a globalização. O primeiro de todos é
que os governos têm que ser representativos da vontade da sociedade. Isto supõe
um controle efetivo, por parte da opinião pública e do eleitor, do que fazem os
governos e um contrato social claramente definido para que aqueles que aspiram
a falar em nome das unidades nacionais que entram no jogo global, possam ser,
realmente, legítimos representantes dos povos.
A
globalização ingênua esquece a maior parte desses componentes. É necessária a
privatização de alguns segmentos parasitários do setor público, mas isto tem
que estar orientado a que as iniciativas e os negócios que se empreendam em
nome dos países e das nações beneficiem o interesse geral e não determinados
setores excludentes.
A
conclusão é que a globalização sem a democracia não funcionará com eficácia e
para que haja bons governos tem que existir mecanismos de responsabilidade
política ante o eleitorado e ante o povo que esses governos representam. Isso
quer dizer que a liberdade e a amplitude dos mercados estão somente garantida
pela liberdade e dignidade democrática dos povos.
*
O autor é conferencista especial da Escola Superior de Guerra, membro emérito
do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, membro da Academia de
História Militar Terrestre do Brasil e Conselheiro do Instituto
Histórico-Cultural da Aeronáutica.
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