Adriano Benayon *
No clássico samba
Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa, o verso fala em “palhaço de perdidas ilusões”.
No tango Mano a Mano, de Carlos Gardel, este diz à que o deixa por um
ricaço: “tenés el mate lleno (a cabeça cheia) de infelices ilusiones”
.
2. Mais infelizes
são as ilusões em que o sistema de poder concentrador enreda o nosso povo,
depois de montar bombas-relógio que têm causado enormes estragos antes mesmo de
detonarem.
3. Entre outras, a
dívida interna federal, que atingiu, no final de
2011, R$ 2.536.065.586.017,68 (mais de dois trilhões e meio de
reais), e a dívida externa, US$ 402.385.102.828,23 (mais de quatrocentos
bilhões de dólares). Esta, em parte privada, acaba virando toda pública em
situações como a de 1982.
4.A soma passa de
três trilhões e seiscentos bilhões de reais e corresponde a 83% do PIB: o valor
da produção interna de bens e serviços nos doze meses do ano.
5. Cerca de 30% dos títulos da dívida
interna figuram como “em poder do Banco Central”, mas este os repassa aos
bancos nas "Operações de Mercado Aberto". Aplicadores do exterior
vendem dólares para comprar desses títulos.
6.O Banco Central fica com parte dos
títulos para cobrir, com o rendimento, o prejuízo de R$ 100 bilhões anuais
(2011), diferença entre os juros pagos pelos títulos do Tesouro e os
juros auferidos com as reservas brasileiras no exterior.
7.E a tragédia da dívida pública não
está só no tamanho dela e no gasto que causa: R$ 708 bilhões de juros e
amortizações em 2011.
8.O pior é que mais de 90% provêm de
juros, taxas e comissões incorporados ao principal (capitalizados), ao longo do
tempo, desde antes de grande parte da dívida externa se ter convertido em
interna, nos anos 80, mesmo após o Brasil ter feito enormes desembolsos em
dólar.
9. Há mais. Conforme dados da
Auditoria Cidadã da Dívida, as despesas de juros e amortizações (serviço da
dívida) totalizaram R$ 2 trilhões durante os mandatos de FHC
(1995-2002) e R$ 4,7 trilhões, durante os de Lula (2003-2010).
10.Com as taxas de juros mais altas
do mundo e a dinâmica dos juros compostos, a dívida cresce através da emissão
de novos títulos em valor maior que os liquidados, porquanto os juros e
encargos estipulados ultrapassam o que a União consegue saldar.
11.Nos últimos 17 anos, o serviço
da dívida custou R$ 7,4 trilhões. Nos 7 anos anteriores, de 1988 a 1994,
ele somou R$ 2,84 trilhões, já aproveitando o dispositivo inserido na Constituição,
através de fraude, o qual privilegia o serviço da dívida no Orçamento.
12.O montante da dívida não
equivalia então nem a 10% do presente, mas o “governo brasileiro”, aceitando o
vergonhoso Plano Baker, emitiu títulos e fez pagamentos em volume espantoso,
para cobrir dívidas atrasadas e abusivamente infladas.
13.De fato, em 1989 e 1990 o
serviço da dívida custou R$ 1,57 trilhão. Essa média anual,
R$ 785 bilhões, em cifras atualizadas a preços de 2011, supera o custo
atual, embora o principal fosse naquela época dez vezes menor que hoje .
14.O serviço da dívida,
correspondendo atualmente a 45% do total das despesas federais, equivale a
17%
do PIB. Nem tudo isso é desembolsado, mas o que não o é vai elevando o montante
da dívida.
15.Seria bem melhor criar moeda e
crédito em bancos próprios, para investir produtivamente, que endividar-se para
rolar dívidas financeiras e, de resto, nunca auditadas. Portanto, o Brasil
poderia quase dobrar os investimentos (19% do PIB), chegando ao patamar dos
países de maior poupança, como China, Taiwan e Coreia.
16. Imagine-se o progresso, se não se
despendessem - há mais de 35 anos - verbas absurdas com a dívida.
Mormente, se se investisse certo, em vez de subsidiar as transnacionais, como o
Brasil faz há 58 anos, desde 24 de agosto de 1954.
17. Os países citados, com potencial
menor que o do Brasil, tiveram resultados incomparavelmente melhores, porque
fizeram investimentos estatais, com crescente autonomia tecnológica, e ajudaram
as empresas nacionais, não as transnacionais. Essa política econômica
levou-os a tornarem-se credores, enquanto o Brasil ficou refém da dívida.
18.Chegamos aqui à verdadeira origem
da dívida. Esta resulta da acumulação dos déficits nas
transações correntes com o exterior, os quais, por sua vez, decorrem
das remessas oficiais e disfarçadas dos lucros que as empresas transnacionais
auferem no mercado brasileiro, que lhes foi entregue a partir de 1954.
19.Além da ocupação do mercado por cartéis
transnacionais, contribuíram para a explosão da dívida:
a) o financiamento externo dos
investimentos na infra-estrutura e nas indústrias de base, realizados em apoio
à indústria “nacional”, cada vez menos nacional;
b) os choques dos preços de petróleo
(1973 e 1979), quando o Brasil era importador;
c) a elevação dos juros em
dólar pelo FED, em agosto de 1979, de menos de 10% para mais de 20% aa.
20. A desnacionalização da economia -
causa primordial da dívida e da desestruturação do País - ganhou corpo a partir
de 1954, quando agentes da oligarquia, Eugênio Gudin e Otávio Gouvêa de
Bulhões, assumiram o comando da política econômica.
21.Baixaram a Instrução nº 113 da
SUMOC, que permitiu às transnacionais (ETNs) importar máquinas e
equipamentos usados, registrando-os como se fosse investimento em
moeda.Assim, as ETNs puderam produzir a custo zero de capital e
tecnologia, pois tais bens de capital estavam mais que amortizados com as
vendas no exterior.
22.Evidentemente, as transnacionais
não declaravam valor zero. De 1957 a 1960, sob JK - que manteve os
subsídios e ainda lhes deu maiores facilidades – as montadoras e outras
transnacionais registraram quase US$ 400 milhões (US$ 3,3 bilhões, atualizando,
conforme a variação, brutalmente subestimada, do IPC dos EUA).
23. Não bastasse, as transnacionais
favorecidas por aquela Instrução contabilizavam à taxa de câmbio livre o
equivalente, em moeda nacional, ao investimento registrado e
convertiam lucros e repatriações de capital à taxa preferencial, quando das
remessas ao exterior. Isso significava mais que dobrar o valor
transferido.
24.Florescentes indústrias de
capital nacional surgiram em grande número, na primeira metade do Século XX,
principalmente na Era Vargas. Depois de 1954, em vez de serem protegidas,
foram prejudicadas pela política econômica.
25.Em 1964, Roberto Campos tornou-se
czar da economia. Bulhões, ministro da Fazenda. Que fizeram? Pretextando
combater a inflação, em alta com a desestabilização anterior ao golpe
patrocinado pelos serviços secretos estrangeiros, reduziram os investimentos,
elevaram os juros e restringiram o crédito: o suficiente para eliminar do mercado
grande número de empresas nacionais.
26.Costa e Silva e Médici reeditaram
o falso milagre de JK, e Geisel tentou o mesmo. A ressaca foi
ainda mais dolorida. Em 1960, o endividamento externo quase levou à
inadimplência. No final dos anos 70, ela já era inevitável e aconteceu em 1982,
juntamente com a moratória do México e a da Argentina.
27.Delfim Neto, em 1969-1970,
instituíra vultosos subsídios às exportações industriais, mais um maná para as
transnacionais. Em 1982, de volta ao governo, sob Figueiredo,
mostrou-se arredio a qualquer atitude que lembrasse soberania, e desprezou a
tentativa argentina de formar o cartel dos devedores.
28.Daí por diante, não cessaram as
capitulações, em notável continuidade entre o governo militar e os governos
instalados após a Constituição de 1988.
29.Advêm nesse ponto os colossais
dispêndios com o serviço da dívida de 1989/1990, ditados pela mágica dos
banqueiros mundiais: não deixar acabar a dívida externa – apesar dos vultosos
pagamentos – e ainda extrair dela a dívida interna, que cresceu
exponencialmente a partir dos anos 80.
30.Entretanto, a coisa não parou
aí. Num processo de retroalimentação perene: a estrutura de mercado, em
poder de empresas estrangeiras, causando déficits externos e
endividamento, e este gerando ocupação ainda maior do mercado por essas
empresas.
31.Isso culminou, a partir de 1990,
com:
1) as “privatizações”: entrega
de estatais, de valor incalculável, em troca de títulos sem valor (moedas
podres), com desnacionalização imediata ou a médio prazo, em razão da
dinâmica do modelo concentrador;
2) a desestruturação do próprio Estado, tornando-o desprovido de instituições capazes de guiar o desenvolvimento econômico e social, e fazendo-o substituir servidores comprometidos com o País por agentes externos.
32.Com a estagnação, acentuada após
a crise de 1982, a taxa de investimento ficou baixa, e os investimentos
continuaram mal direcionados.
33. Mesmo sem crescimento
econômico, os fatores do endividamento continuaram operando, até, em 1999,
final do primeiro mandato de FHC, eclodir outra crise externa, ocultada até o
desenlace, após a reeleição viabilizada pela corrupção para a emenda à
Constituição.
34. Nos mandatos de Lula e no de
Dilma, elevaram-se as taxas de crescimento do PIB, com a expansão do crédito,
especialmente público, e navegando sobre preços mais altos nas exportações primárias.
35.Então se formaram bolhas e, a
cada sinal de exaustão, o governo reage com pacotes que intensificam a
deterioração estrutural da economia, em curso desde 1954 e agravada desde 1990.
De fato, em 1970 oligopólios de transnacionais já controlavam o grosso da
indústria, e depois foi quase todo o restante.
36.Os expedientes para o
“crescimento” subordinam-se aos dogmas do Consenso de Washington, tais como
parcerias público-privadas, nas quais o dinheiro público financia os
empreendimentos e assume o risco, cabendo a gestão e lucro garantido a
concentradores privados. Na mesma linha, os créditos subsidiados do BNDES às
transnacionais - e novas isenções fiscais e doações em favor destas
- refletem o estado patológico das relações de poder.
37. FHC fez desnacionalizar como
ninguém, mas, segundo a Consultoria KPMG, de 2004 a junho de 2012, mais 1.167
empresas brasileiras passaram para controle estrangeiro.
38.Mais do que as fusões e
aquisições, os investimentos estrangeiros diretos (IEDs) – onde
se computa também o reinvestimento de lucros - são o principal
mecanismo da desnacionalização.
39.O estoque de IEDs acumulado de
1947 a 2005 montou a US$ 180 bilhões, e só os de 2006 a 2011 superam
esse montante, com US$ 192,7 bilhões.
40. No mesmo período, os déficits
de “serviços” e “rendas” aumentaram 114%. Somaram US$ 345,4 bilhões nesses seis
anos, quantia equivalente a 93% do estoque de IEDs até 2011.
41.Os IEDs e outras modalidades de
capital estrangeiro têm equilibrado o Balanço de Pagamentos, como o uso
acrescido de drogas alivia o toxicômano, i.e., agravando a doença estrutural da
economia.
42.Assim, se não forem revertidas as
regras que o Brasil vem obedecendo cegamente, as transferências das
transnacionais levarão a uma crise externa incontornável, a qual, se
tratada como as anteriores, fará elevar os juros e tornará a dívida pública
ainda menos suportável.
43.Está presente também, em função
da provável desvalorização do real, a perspectiva de avultar ainda mais a já
desbragada venda – por nada - de empresas, títulos públicos e
terras brasileiras.
44.De fato, por imposição imperial,
acatada por países submissos, o dólar continua valendo como moeda
internacional, não obstante ser moeda falsa, aviltada por emissões às dezenas
de trilhões, passados aos bancos da oligarquia. O Brasil entrega tudo para
ficar com depósitos em dólares, fadados não só a perder valor, mas também a
sumir de repente quando se desencadear a fuga de capitais.
*
- Adriano Benayon é doutor em economia e autor do livro Globalização versus
Desenvolvimento, editora Escrituras SP.