Adriano Benayon
I - 24 de agosto de
1954
Este aniversário é
o da deposição do presidente Getúlio Vargas, programada e dirigida pelos
serviços secretos estadunidense e britânico.
2. A quadra
histórica era decisiva. O Brasil – desde sempre dotado de colossais
recursos naturais – havia, a partir de 1930, acelerado o processo de
substituição de importações industriais, graças a três fatores principais:
a) a falta de
divisas, advinda da crise financeira e econômica mundial, com a queda da
demanda por café e outros produtos primários;
b) a tensão entre
potências mundiais de 1933 a 1939, e daí a 1945 a Segunda Guerra Mundial;
c) a Revolução de
outubro de 1930 e os posteriores eventos políticos no Brasil até à primeira
deposição de Getúlio Vargas, em 29.10.1945.
3. Os dois
primeiros fatores são as condições de crise e oportunidade. O terceiro é o
papel das instituições políticas geradas em resposta à crise, as quais
transformaram a estrutura econômica no sentido de reduzir a dependência da
exportação de matérias-primas. Além disso, Vargas mandou proceder à auditoria
da dívida e liquidou os títulos no mercado secundário, com grande desconto.
4. Ele se manteve
na chefia do governo durante aqueles 15 anos, conquanto de novembro de 1937 a
1945 dependesse das Forças Armadas, a fonte de poder instituidora do Estado
Novo.
5. Por terem as
políticas de Getúlio Vargas desagradado as potências anglo-americanas, era
questão de tempo ele ser apeado da presidência, terminada a Guerra
Mundial (maio de 1945),
6. Durante a
Guerra, Vargas teve de colaborar com essas potências, as quais, não mais
precisando dele, teleguiaram a oligarquia local, políticos, mídia e
chefes militares para depor o “ditador”, sob o pretexto de que queria ficar no
poder.
7. Isso não tinha
cabimento, porque Vargas convocara eleições e se dispunha a passar a
presidência ao eleito. O golpe de 1945 foi só vingança e tentativa de humilhar
o líder trabalhista.
8. Por
ocasião do golpe de 1937, os chefes militares, movidos pelo anticomunismo,
estavam divididos entre simpatizantes do imperialismo anglo-americano e
partidários das potências nazi-fascistas. Assim, Vargas pôde atuar como
fiel da balança e no interesse nacional
9. Os militares
nacionalistas não ocupavam posições que lhes habilitassem a imprimir
rumos diferentes, em 1937, e menos ainda em 1945, quando os de tendência
fascista convergiram com os admiradores das potências anglo-americanas.
10. Eleito em 1945,
o Marechal Dutra (1946-1950), mentor do golpe de 1937, reprimiu os
comunistas, converteu-se mais que à “democracia” , à abertura irrestrita às
políticas do agrado de Washington.
11.
Entretanto, Vargas ganhara a simpatia dos trabalhadores, elegeu-se
senador por vários Estados, e voltou à presidência em 1951, por grande maioria
popular. Criou a Petrobrás e deu passos para a fundação da Eletrobrás.
Apoiou os excelentes projetos de sua assessoria econômica e cuidou de deter as
abusivas remessas de lucros ao exterior das transnacionais.
12. Se
prosseguissem as realizações de Vargas, o Brasil teria chances de se
desenvolver, e esse foi o móvel do golpe de agosto de 1954, organizado
pelas potências imperiais.
13. Os agentes
externos postos por esse golpe na direção da política econômica
instituíram enormes subsídios em favor dos investimentos das
transnacionais, que operavam em muitos mercados no exterior, cada um de
dimensões muito maiores que o brasileiro.
14. Em vez de
proteger as indústrias de capital nacional para viabilizar competirem com as
transnacionais, aquelas sofreram discriminação, com os imensos subsídios
que só podiam ser utilizados pelas corporações estrangeiras.
15. Eleito para o
quinquênio 1956-1960, Juscelino manteve esses subsídios e estabeleceu
facilidades adicionais para as empresas estrangeiras. Implantadas no País,
estas transferem ao exterior, de diversas maneiras, os enormes lucros obtidos
no mercado brasileiro, causando déficits no Balanço de Pagamentos.
16. Primeira cena dessa tragicomédia:
eleito, antes de tomar posse, JK viajou ao exterior para atrair investimentos
estrangeiros, com notórios entreguistas na comitiva. Segunda cena: sai
JK, entra Jânio Quadros, e este envia ao exterior missão chefiada por Roberto
Campos para rolar dívidas externas vencidas, contratadas durante o governo de
JK.
17. Depois do conturbado período
entre a renúncia de Jânio e o golpe de 1964, derrubando Goulart, o primeiro
governo militar, a pretexto de fazer face à alta da inflação e à crise externa,
adotou, sob a direção de Roberto Campos, políticas fiscal, monetária e de
crédito restritivas, eliminando grande número de empresas nacionais.
18. As lições econômicas disso tudo
são importantes, como também as lições políticas. Entre elas avulta esta: prevalece
sobre a Constituição escrita a regra constitucional,
não-escrita, de que os governos em regime “democrático” só concluem seus
mandatos, se se curvarem às pressões das potências imperiais.
19. Vargas e João Goulart realizaram
políticas que visavam a gerar maior autonomia econômica para o País, embora
fizessem concessões ao poder imperial.
20. Diferentemente, Dutra cedera aos
interesses das potências estrangeiras, e JK deu-lhes plena satisfação no
essencial: a abertura aos investimentos estrangeiros, escancarada pela outorga
de privilégios que permitiram as transnacionais, a médio prazo, assenhorear-se
do mercado brasileiro.
21. Até a proteção tarifária e
não-tarifária aos bens duráveis produzidos no Brasil significou uma vantagem a
mais às multinacionais, ampliada, quando, em 1969-1970, Delfim Neto estabeleceu
vultosos subsídios para a exportação de manufaturados, entre os quais créditos
fiscais no valor do imposto de importação dos bens de capital e dos insumos.
22. Os governos militares de 1967 a
1978 tentaram redinamizar a economia sem alterar o modelo dependente, nem
garantir espaço às empresas nacionais em face da então já dominante ocupação do
mercado pelas transnacionais. O resultado disso nos leva a outro aniversário.
II - Agosto/setembro de 1982
23. Em 16.08.1982, o México declarou
moratória. Em seguida, o setembro negro, em que os gestores da política
econômica brasileira, sob o espectro da inadimplência, imploraram aos
banqueiros internacionais refinanciar as dívidas.
24. A crise de 1982 foi muito maior a
de 1961, gerada pelas políticas de 1954 a 1960. A causa essencial de ambas foi
a mesma: a ocupação dos mercados pelas transnacionais, intensificada de 1964 a
1982.
25. JK recebeu a dívida externa de
US$ 1,4 bilhão em 1955. Ao sair, deixou US$ 3,5 bilhões. Em 1964 ela
fechou com US$ 3,1 bilhões, pulando para US$ 43,5 bilhões,
em 1978, e para US$ 70,2 bilhões em 1982, tendo-se avolumado ainda
mais pela elevação das taxas de juros e comissões, em 1979, além da composição
desses encargos arbitrários.
26. As altas taxas de crescimento do
PIB de 1967 a 1978 foram pagas pelo povo brasileiro, não só com a queda do PIB,
de 1980 a 1984, e a estagnação nas duas décadas perdidas (anos 80 e 90). Em
1984, o Brasil transferiu para o exterior 6,24% do PIB e mais 5,54% em 1985.
27. Mas o dano maior - e
irreversível sob as presentes instituições - é a deterioração
estrutural. Essa prossegue até hoje e se caracteriza pela
infra-estrutura deficiente e pela produção quase totalmente
desnacionalizada, inclusive através das privatizações de 1990 a 2002.
28. Há um processo cumulativo
em que a desnacionalização faz crescer a dívida, e esta é usada como pretexto
para desnacionalizar mais. Tudo isso faz prever novas e piores crises, em
que cresce a desindustrialização.
29. As débâcles, como a de 1982,
ilustram a mentalidade servil diante dos “conselhos” e pressões imperiais, pois
o Estado brasileiro curvou-se às imposições dos credores, aceitando a
integralidade de dívidas questionáveis, depois de tê-las alimentado,
subsidiando a ocupação estrangeira da economia e inviabilizando a tecnologia
nacional.
30. “O Globo” veicula a desculpa de
Delfim Neto, de que o colapso de 1982 decorreu da elevação dos preços do
petróleo. Isso não procede: a Argentina não importava petróleo, e o
México era grande exportador. O denominador comum das maiores economias latino-americanas
é o modelo dependente.
31. Nos anos 70, a Petrobrás já
substituía razoável quantidade de petróleo importado, e as importações eram
pequena fração das de Alemanha, Japão, França.
32. O primeiro choque do petróleo
deu-se em 1973. Daí a 1982 são nove anos. Tempo suficiente para medidas na
estrutura produtiva, com resultados em seis anos, antes, portanto, do segundo
choque do petróleo em 1979.
33. Tecnologia não faltava para
substituir as importações de petróleo. O Brasil havia adotado, durante a
Segunda Guerra Mundial, uma solução que funcionou muito bem: o gasogênio,
para mover os veículos, com equipamentos que usavam carvão mineral do
Sul, carvão e óleos vegetais. Foi abandonado após a Guerra, mas poderia ter
sido retomado em 1973.
34. Geisel apoiou Severo Gomes
e Bautista Vidal, no Programa do Álcool. Mas este não prosseguiu na forma
planejada, nem se avançou nos Óleos Vegetais, que oferecem ao Brasil
grande campo – até hoje inaproveitado – para produzir excelentes óleos e
fabricar motores próprios para eles.
35. O dendê, na Amazônia e no Sul da
Bahia, pode render mais de 6 mil litros hectare/ano. Para
produzir quase tanto como a Arábia Saudita, ou seja,mais de cinco vezes
o consumo brasileiro da época, bastaria plantar dendê em 60 milhões
de hectares, ou seja, 12% da Amazônia Legal, associado a culturas
alimentares. Em outras regiões a macaúba dá 4 mil
litros ha/ano.
36. Essas opções são mil vezes
melhores para a ecologia que extrair madeira para exportar, enquanto as ONGs
vinculadas ao poder mundial fazem demagogia a respeito do desmatamento da
Amazônia.
37. O óxido de carbono só é absorvido
pelas plantas quando crescem. A Amazônia, com a floresta estável, não é pulmão
do mundo. Esse papel cabe aos oceanos, que as petroleiras mundiais poluem de
modo brutal.
38. É fácil e praticado, há muito, na
Alemanha, produzir kits para adaptar motores ao uso de óleo vegetal. Melhor
seria, mas o sistema de poder nunca o permitiu - produzir motores para esse
óleo, o verdadeiro diesel. Biodiesel é um dos golpes do sistema para impedir o
desenvolvimento dessas tecnologias, bem como as da química dos óleos vegetais e
da alcoolquímica.
39. A deterioração das contas
externas no final dos anos 70 serviu de gazua para a penetração do Banco
Mundial no Programa do Álcool, desvirtuando-o, pois foi desvinculado da
produção alimentar e tocado no sistema de plantations e mega-usinas,
hoje, na maior parte, desnacionalizadas.
40. Moral: se houvesse autonomia
política, coragem e discernimento, ter-se-ia aproveitado o choque do
petróleo para desenvolver produções agrárias e industriais com tecnologia
própria e adequada aos recursos naturais. Resultaria em prosperidade social
incalculável com a energia renovável, além de esse padrão de desenvolvimento
autônomo estender-se a outros setores.
41. Em suma, o mega-entreguismo de
Collor e FHC não teria sido possível sem as políticas inauguradas em 1954 e
continuadas de 1956 a 1960 e de 1964 até hoje. Por que? Porque essas políticas
engendraram a relação de forças econômica e política determinante das
desastrosas eleições daqueles dois.
III - Sete de
setembro de 1822
Está, pois, claro
que o povo brasileiro precisa de real independência e que esta não existe. Não
merece crédito o argumento de que há autonomia política, embora falte a
econômica, porquanto uma não é possível sem a outra. Não se confunda a
independência formal com a real.
*
- Adriano Benayon é doutor em economia e autor de Globalização versus
Desenvolvimento.