sábado, 14 de dezembro de 2013

Estados, soberania e autodeterminação


* Manuel Cambeses Júnior

        O Século XIX viu o surgimento dos últimos grandes Estados. Nesse século, não somente Alemanha e Itália fizeram seus aparecimentos no cenário mundial, mas, também, os Estados Unidos puderam realizar seu destino manifesto, transformando-se em um grande Estado continental.

        O Século XX, entretanto, conseguiu evidenciar as máximas expressões de estadolatria, com o aparecimento do fascismo e do comunismo, e, também, de importantes Estados surgidos do desmembramento dos impérios coloniais.

        Acrescente-se que, durante os 50 anos que durou a Guerra Fria, o mundo girou em torno de um sistema de relações interestatais centrado em dois grandes Estados. A última década daquele século, entretanto, transformou-se na era do ocaso dos Estados.

        Em nenhum momento da evolução histórica da humanidade ,os Estados encontraram-se em tal condição de desprestígio. O novo Direito Internacional aponta para concepções tais como: direito de ingerência, tutelas supranacionais, direitos humanitários e soberanias limitadas; todos os quais coincidem no desconhecimento da primazia estatal dentro da ordem internacional.

        Por outro lado, o fenômeno da globalização vai carcomendo, implacavelmente, as funções dos Estados e as identidades sobre as quais estes se assentam, ao mesmo tempo em que o fenômeno étnico e os fundamentalismos vão escavando suas bases de sustentação.

        Observa-se que o poder que anteriormente os Estados detinham atualmente tendem a fluir em três direções distintas: para cima, orientado aos organismos supranacionais e coletivos; para os lados, em direção às organizações não governamentais e, finalmente, para baixo, dirigido a regiões cada vez mais autônomas.

        Particularmente chamativo é o duplo processo de desmontagem que se opera sobre o Estado, desde as instâncias da globalização e do fundamentalismo. Sob o influxo da globalização, os Estados vão se desfazendo de boa parte das funções que os caracterizavam, adentrando em processos de privatização e abandono de serviços públicos. Cada vez menos, os Estados se distinguem das corporações privadas e, cada vez mais, vão se regendo pelas mesmas normas de competitividade.

        Os cidadãos, crescentemente desassistidos e ansiosos, observam como ao seu redor tudo passa a reger-se pelas exigências e pela ética do capital privado. A inevitável erosão da lealdade do cidadão para com o Estado vê-se reforçada com o desgaste da identidade nacional que a globalização traz em seu bojo. É o resultado inevitável da homogeneização planetária.

        De alguma maneira, o fenômeno globalizador vai pressionando, de cima para baixo, o Estado, através de uma intensa ação asfixiante. A única resistência capaz de interpor-se a essa ação devastadora e implacável é representada pelos núcleos de identidades subsistentes, ou seja, os fundamentalismos e os etnicismos desatados, que conspiram sistematicamente contra os Estados, destruindo seus alicerces.

        Paradoxalmente, a crise do Estado tem vindo acompanhada do surgimento indiscriminado de novos Estados. Somente do desmembramento da União Soviética, da Iugoslávia e da Checoslováquia surgiram 22 Estados independentes.

        Porém, não foi somente no velho bloco socialista que se produziu este fenômeno. Países centrais dentro do mundo ocidental, como Canadá e Bélgica, confrontam a mesma ameaça. O porquê deste fenômeno está intimamente ligado à própria crise do Estado. Quatro elementos centrais explicariam o processo em marcha:

        Primeiramente, os núcleos radicais de identidade que buscam conformar Estados que atendam às suas particulares características.

        Em segundo lugar, a possibilidade de encontrar, em nível planetário, os elementos de complementariedade e integração que davam sentido ao Estado. Em outras palavras, na medida em que os Estados se integraram globalmente, e deixaram de ser unidades de auto-sustentação, torna-se possível que suas regiões componentes possam aspirar a uma existência independente.

        Em terceiro lugar, o próprio fato de que o êxito na economia global não é determinado pela quantidade de recursos naturais, mas sim pela qualidade de seus recursos humanos. Os segmentos e regiões mais avançados do interior dos Estados começam a ver, como uma carga desnecessária, os territórios e porções sociais mais atrasados, buscando desvencilhar-se deles.

        Em quarto lugar, sob a proteção dos organismos de segurança coletiva e do novo Direito Internacional, já é possível a subsistência de Estados débeis, tornando-se desnecessário o escudo protetor dos Estados mais fortes.

        Em síntese, hodiernamente, a crise que os Estados enfrentam é a própria fonte de sua proliferação, ou seja, os Estados ampliam-se em quantidade, porém significam cada vez menos em termos de soberania e autodeterminação.

* O autor é Coronel-Aviador; membro emérito do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil, conselheiro do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica e conferencista especial da Escola Superior de Guerra.

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