sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Relação perversa: O cidadão começa a perder a obrigação de ser honesto com o Estado


 
Aylê-Salassié  F. Quintão*
 
             A lei é um desastre e o Estado não é honesto com o cidadão. “É mais fácil prender um menino com 10 gramas de maconha que um empresário por um golpe de R$ 10 milhões”. Quem acaba de dizer isso é o  novo ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, numa entrevista para o jornal Correio Braziliense. Suas considerações conduzem a  muitas dúvidas e a uma única pergunta: o Brasil está sendo passado a limpo ou está diante de uma deterioração institucional? Cotidianamente, a confusão se faz  em todas as esferas do Poder , deixando perplexa a Nação.

              Na Justiça, inclusive no Supremo Tribunal Federal,  tramitam casuísmos em excesso, com  ganhos que nunca resultam em benefício para a cidadania . Vive-se uma complexidade oportunista.  Os tribunais legislam ou julgam? O direito de ricos e pobres  é igual, ou o modelo do “trânsito em julgado” e o “sistema recursivo” foram feitos somente para os ricos? A prisão domiciliar é um lixo ou é um luxo?  Explicar a progressão de penas dá trabalho, mas endurece o sistema custa mais caro. E o foro privilegiado?  
 
               Para começar, só no Judiciário tramitam mais de 80 milhões de processos. No Supremo Tribunal Federal, cuja vocação é (quando interpelado)  julgar constitucionalidades , entram anualmente 50 mil novos processos. Um sem número trata  de questões políticas ou morais que se pretende sejam  judicializadas.   
 
               O equívoco advém do desconhecimento, da omissão de outros poderes,  da fragilidade do rito processual, da  protelação de sentenças ou  por  má fé mesmo.  Brinca-se  de  Justiça,  gerando  uma quantidade enorme de interpretações  pessoais que se tornam em jurisprudência, e passam a ser  aplicadas de maneira ampla, como se fossem leis emanadas dos céus. A população fica confusa.

              Com o peso da responsabilidade de substituir Joaquim Barbosa,  o novo  ministro do STF, (57 anos),  professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Centro Universitário de Brasilia, diz  que  o Supremo age praticamente  no vácuo do Congresso.
 
              O Parlamento  tegiversa em suas responsabilidades, elas terminam indo dar no tribunal. Ninguém tem dúvida de que o País precisa urgentemente de uma reforma política para mudança de paradigmas.  O Congresso  age em sentido contrário: como uma raposa que cuida dos ovos: não só os come, como, no dizer de Mário de Andrade, deglute-os prazerosamente.
       
              O País vive uma crise de legitimidade, admite Barroso. Ao falar sobre o impeachment ressalta, contudo, que  o Brasil está há trinta  tentando consolidar as instituições e o poder civil ,e  ”não se pode sacrificá-los no altar da política”. Significa que, sob um diáfano manto de democracia, ninguém parece sentir a necessidade de prestar contas aos eleitores.
 
                 A presidenta tem índices de popularidade abaixo de 10%; mas,  por outro lado,  menos 10% dos parlamentares foram eleitos pelo voto direto. Mais de 90%  dos deputados que estão no Congresso devido à transferência de votos de candidatos perdedores  dentro dos próprios partidos ou de partidos coligados, votos nulos, cancelados e abstenções. É o chamado voto proporcional. O Congresso que aí está foi eleito por menos da metade do eleitorado brasileiro. O eleitor não está nunca representado ali. Vota em um sujeito e elege outro.
 
                 No modelo de hoje, o eleitor  não sabe quem o representa. Todos, na esfera dos Três Poderes,  desvencilham-se fácil da responsabilidade. A representação como tal é letra morta?  Defende Barroso o voto distrital e a cláusula de barreira para as coligações, de forma a amenizar ainda os efeitos das legendas de aluguel, partidos de ocasião e de conveniência. O foro privilegiado precisa também acabar.
        
               Reconhece o ministro ser necessário criar uma cultura de responsabilidade política e de boa fé que vá do cidadão comum ao presidente da república.  O modelo  “hiperpresidencialista” é um entrave. Centralizado em pessoas, reproduz entre os  súditos o estado de espírito e a insegurança dos governantes.
 
               O projeto de Nação é relegado a um segundo plano. Outro engano é a partidarização explícita do Estado. Vicia o sistema e desestabiliza as instituições. Defende o ministro do Supremo a discussão imediata de um regime que seja, no mínimo, semi-presidencialista. O  presidente é eleito diretamente pelos cidadãos, nomeia ministros, comandantes, embaixadores   e o próprio primeiro-ministro a quem seria entregue a gestão das políticas públicas . Contudo, a nomeação de um chefe de governo  deve ser condicionada a aprovação pelo Congresso e, quiçá, também a sua destituição.  
                 Cria-se uma corresponsabilidade  e  enfrenta-se esse “front  inóspito da batalha” política .     O modelo claudicante que aí está  não oferece essa  possibilidade. E assim apropriado oligárquica, privada ou partidariamente, o  Estado não consegue ser equânime no tratamento com a população. Em contrapartida, o sujeito, cada vez mais consciente, não sente a obrigação de ser honesto com o Estado. A relação entre o cidadão e o Estado torna-se perversa para a Nação. 
*Professor, Doutor em História Cultural. Consultor da Catalytica Empreendimentos e Inovações Sociais

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