José Everaldo Ramalho
O mundo político brasileiro atravessa um momento de intensa agonia frente às denúncias de acordos de corrupção que transferem enormes somas de recursos financeiros desviados dos cofres públicos para os bolsos dos representantes e governantes, no poder ou fora dele temporariamente, eleitos por sufrágio universal, e nós, pobres cidadãos assistimos bestializados a todo este imbróglio, como a cidadania nossa avozinha presenciou, também bestializada, o episódio da proclamação da República, em 1889, sem qualquer tipo de participação.
Hoje, continuamos sendo bestializados, porque mecanismos de democracia direta como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, previstos na Constituição, são pouco utilizados com oportunidade e eficiência, pois dependem de o Congresso Nacional os autorizar ou admitir. Vejam-se as dificuldades enfrentadas, recentemente, pelo grupo de cidadãos que conseguiu levar até o fim o projeto conhecido como da ficha limpa.
Há muito tempo, em nosso país, movimentos de corrupção solapam os esforços de governos que se sucedem em tentativas de posicionar o Brasil nos, digamos, caminhos do desenvolvimento sustentável, e nenhum grupo político que se alça ao poder, seja ele de direita ou de esquerda, armado ou desarmado, tem favorecido o uso de mecanismos de democracia direta, mesmo que inseridos no texto constitucional de 1988, por mérito de uma Assembleia Constituinte, responsável pela elaboração de uma Constituição apelidada de cidadã.
Podemos deduzir que a alma política brasileira foi forjada e bestializada pelo colonialismo português que não admitia a participação popular nas decisões de governo, afinal os reis nossos avozinhos tinham o respaldo divino para excluir o povo do acesso às tetas públicas.
No entanto, passados quinhentos anos da visão deslumbrada do Monte Pascoal em território baiano, pelos navegadores portugueses, e chegando ao poder um partido político que se dizia de esquerda e do trabalhador, nem assim conseguimos ver implantado um mecanismo destinado a promover verdadeiras ações democráticas diretas, balizando o caminho para o sonho da democracia deliberativa, pois o tão badalado orçamento participativo petista nada significava em termos percentuais na arte de dividir o poder de governar e bem atender às demandas da cidadania.
Quem, por sorte de ser militante ou servidor público, participou de reuniões do primeiro governo petista em Brasília, à época, para discutir a implantação do orçamento participativo, teve a oportunidade de entender que o povo, mais uma vez bestializado, só poderia discutir a alocação de, no máximo, 15% do orçamento disponível, ou seja, os governantes, como sempre, mesmo em um governo de esquerda, continuariam com o direito supremo de decidir como manejar o dinheiro arrecadado desse mesmo povo que os conduziu ao poder, e o cidadão, bestializado, a tudo assistiu como figurante..
Na sequência das eleições no Distrito Federal, o Partido dos Trabalhadores mais uma vez chegou ao poder, agora liderado pelo médico Agnelo Queiroz, ex-deputado, e dessa vez contando com o respaldo de uma presidência da República petista após dois mandatos exercidos com relativo sucesso. Ao final de mais uma oportunidade de governo, por sua obra e artes políticas, o projeto de reeleição do PT foi rejeitado nas urnas por cerca de 70% do eleitorado brasiliense, na esteira do mais caro estádio de futebol já construído no país, coisa aí da ordem de dois bilhões de reais, enquanto o sistema de saúde pública sofria um brutal sucateamento. Assim, foi enterrada de vez a proposta de orçamento participativo no Distrito Federal, um possível mecanismo de democracia direta que, se conduzido honestamente, poderia levar-nos a uma democracia deliberativa à brasileira.
Será que o tema da democracia direta é objeto de discussões e reflexões apenas no eterno país do futuro, como pensou e escreveu Stefan Zweig sobre o Brasil? Não, é a resposta a tal questionamento sobre a possibilidade do exercício da democracia direta pela via de mecanismos políticos no resto do mundo democrático espalhado no globo terrestre.
Nos Estados Unidos, em especial nos estados da região Oeste, com destaque para a Califórnia, por exemplo, este é um tema bastante discutido, já acumulando milhares de livros, ensaios, artigos e até exemplos práticos sobre a participação dos cidadãos por meio de mecanismos de democracia direta, que funcionam como suplemento do projeto republicano da representatividade política, desenhado e armado com fundamento nas chamadas reflexões Madisonianas, de cujas discussões representantes californianos não puderam participar, pois, quis o destino, ou o tempo, senhor da razão, a conquista do Oeste só se daria um pouco mais adiante.
E quais seriam os mecanismos de democracia direta que suplementariam a representação republicana desenhada pelos pais fundadores da bicentenária constituição norte-americana, um texto que recebeu apenas vinte e sete emendas em dois séculos de existência, mas que, segundo os estudiosos do tema, sofreu modificações importantes através de meios informais, sem o necessário aprofundamento das discussões no Congresso Nacional e sem uma consulta democrática à cidadania?
Sem maiores surpresas, tais mecanismos são: a iniciativa popular, o referendo e a revogação do mandato parlamentar, todos do pleno conhecimento das elites políticas brasileiras, os dois primeiros deles até inseridos em nosso texto constitucional vigente, e o terceiro adotado em nossa primeira constituição republicana de 1889.
Antes de quaisquer comentários sobre os referidos mecanismos utilizados para o exercício da democracia direta nos Estados Unidos, os estudiosos acadêmicos naquele país apontam a principal motivação que tem fortalecido este ativismo de modo crescente: a perda da confiança dos cidadãos no funcionamento dos tradicionais poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. E essa crescente perda de confiança nas instituições do modelo político norte-americano tem sido estimulada, dentre tantos outros fatores, apontam centenas de estudos e pesquisas, pelo sistema de financiamento das eleições, pelos meios de comunicação privados, incluindo-se aqui as modernas redes sociais, e, finalmente, pela polarização da política norte-americana.
E os norte-americanos acrescentam que o mau funcionamento das três esferas de governo tem levado ao surgimento de disfunções governamentais, exageros judiciais e favorecimentos de grupos de interesses pelo legislativo, e por causa disso o eleitorado tem aventado a necessidade de reformas constitucionais, pois a presente ordem constitucional, velha de dois séculos, tem contribuído para causar desastres na política, ou, mais enfaticamente, resultados governamentais que não interessam a nenhuma facção política, em poucas palavras, resultados que não são do interesse de ninguém, claramente decorrentes do mau funcionamento das instituições públicas entregues a políticos negligentes e gerentes ineficientes ou causados, de propósito, por administradores privados corruptos.
Pode-se perguntar que tipo de desastres na política, essa mundialmente tão respeitável ordem constitucional norte-americana, por tanto tempo tão elogiada e copiada, tem causado nas terras situadas acima da linha do Equador?
Os estudiosos norte-americanos citam como exemplos de descaminhos pelo menos quatro conhecidos desastres na política do seu país que, no seu entender, aconteceram em decorrência da ordem constitucional vigente nos EUA: a) o ataque terrorista às Torres Gêmeas de 11 de setembro de 2001, b) a inundação de New Orleans provocada pelo Furacão Katrina, em 2005, c) a crise financeira de 2008, e, d) a crescente desigualdade de renda e da riqueza nos Estados Unidos, nas últimas três décadas do século XX.
Em um breve resumo, os referidos desastres na política dos EUA, de acordo com os próprios norte-americanos, estão estreitamente vinculados a defeitos incentivados pela ordem constitucional vigente no país desde 1789, e são assim explicados:
Nessa versão, os ataques terroristas às Torres Gêmeas só puderam acontecer porque o Congresso norte-americano foi negligente, ao acreditar que o serviço de inteligência de uma potência econômica e bélica como os EUA funcionária a contento com tantas agências, por exemplo, com o FBI cuidando de questões internas, a CIA se ocupando das questões externas, e ainda com a NSA (National Security Agency) com o poder de acioná-las sob as ordens do Secretário da Defesa, ou seja, as duas agências não tinham independência para agir por conta própria. Isso sem contar que os militares dispõem dos seus próprios serviços de inteligência, o que, inevitavelmente, aumenta o tempo de resposta do país em matéria de ataques externos. Ao mesmo tempo em que o sistema de inteligência para defesa do país era tão dividido, o Departamento de Defesa, aliado a seus representantes no Congresso Nacional, se perdiam permitindo a criação de mais de dezenove diferentes comissões e subcomissões, que nada entendiam do tema serviços de inteligência, graças à ordem constitucional que delegou à casa legislativa o direito de tratar como lhe aprouvesse de tão fundamental assunto em um tempo completamente diferenciado da realidade tecnológica em que viveram os formuladores da Constituição em 1789. Em números, como apreciam os norte-americanos, os ataques às Torres Gêmeas mataram 3.000 cidadãos e causaram um prejuízo calculado em U$ 500 bilhões.
A inundação da cidade de New Orleans pelas águas do Lago Pontchartrain, provocada pelo Furacão Katrina, em agosto de 2005, é considerado um desastre da política pelos próprios analistas norte-americanos em razão da ordem constitucional criada pela separação dos poderes, segundo eles um sistema federalizado que, no geral, não compartilha o poder, em outras palavras, sempre que uma ação exigir coordenação, cada esfera de governo tem o direito de veto sobre o resultado do processo político, como estabelecido pela Constituição de 1789, pois a ideia à época era proteger ao máximo os cidadãos de possíveis ações autoritárias do governo federal Assim, o fracasso na resposta ao desastre em apreço expôs uma das fraquezas da constituição norte-americana: a ausência de um mecanismo para coordenar o trabalho dos governos local, estadual e federal. Apontam os analistas deste caso que se pode identificar a fragmentação dos poderes e das autoridades governamentais, estabelecida pelos constituintes de 1789, até mesmo antes do desastre, pela falta de coordenação entre o planejamento da construção das barreiras de contenção das águas do Lago Pontchartrain, pelo governo federal, e a responsabilidade pela manutenção das mesmas pelos governos local e estadual. Resultados do desentrosamento político-governamental: 1.400 mortos, milhares de cidadãos feridos e desabrigados e bilhões de dólares de prejuízo para as economias local, estadual e federal.
O terceiro desastre se materializa com a crise financeira de 2008. Apontam os analistas norte-americanos que este era um desastre anunciado há muito tempo, pois a circulação do capital nos EUA é respeitada como fator primordial para o dinamismo desenvolvimentista do país, mas as rédeas que procuram controlar o segmento do capital financeiro são bastante curtas, como denunciou Karl Marx. Assim, os representantes do capital financeiro conseguiram impor uma “desregulamentação” do sistema para deixa-lo assumir mais riscos, com a desculpa de que isto criaria mais riqueza para todos. Mais uma vez, a existência de múltiplas agências de controle produziu um acordo que possibilitou uma maior confiança em mecanismos de mercado do que em uma séria estrutura regulatória e de supervisão do sistema financeiro, que fosse discutida pelos técnicos do Tesouro Nacional e aprovada pelo Congresso Nacional e que seria conduzida pelas principais autoridades monetárias federais. Em setembro de 2008, o Secretário do Tesouro tentou convencer o Presidente Bush a apoiar uma ajuda federal de enorme custo ao sistema bancário, pois a economia inteira já estava ameaçada pela crise financeira. A explicação dada sobre a crise escondeu do presidente que a proposta de desregulamentação fazia parte de um ciclo iniciado nos governos Carter e Reagan e tivera sua origem na era do New Deal, contando com o apoio de políticos e autoridades monetárias vinculadas aos partidos que vem comandando a política desde o projeto de Franklin Delano Roosevelt, criador de uma “ideologia da regulamentação governamental”, responsável por quase quatro décadas de estabilidade sem uma grande crise. Porém, nos anos 1980 o setor-chave do sistema financeiro, liberado do controle da estrutura básica de regulamentação vigente, criou o “mercado de derivativos”. Na sequência, o fracasso em regulamentar o mercado de derivativos e muitas outras inovações, tornou possível uma década de “frenesi financeiro" que acabou por gerar a pior crise financeira e a mais profunda recessão econômica que o mundo enfrentou desde a Segunda Guerra Mundial. Para interrompê-la, as autoridades monetárias dos EUA buscaram a legitimação que só o Congresso Nacional do país podia dar, abrigado pela arquitetura constitucional construída no século dezoito, ainda vigente como ordem constitucional contemporânea, e apenas ele capaz de autorizar o poder Executivo a liberar bilhões de dólares do Tesouro Nacional para salvar o sistema financeiro e os bancos responsáveis pelo desastre. No entanto, por ironia, foi esse mesmo Congresso Nacional norte-americano que permitiu o surgimento de um defeituoso esquema regulamentador do sistema financeiro, a desregulamentação que possibilitou empréstimos predatórios e a mais irresponsável especulação no comércio da construção civil e do financiamento habitacional nos EUA de todos os tempos, o que atraiu o segmento de renda mínima, a classe média e os ricos. Para completar o desastre, nenhuma explicação sobre a crise foi dada ao público que teve que suportar suas consequências, e o prejuízo total materializou-se com US$ 13 trilhões desmanchando-se no ar, uma riqueza correspondente ao Produto Nacional Bruto de um ano inteiro da produção econômica dos EUA. Enfim, o desastre da crise financeira de 2008 causou a pior recessão dos últimos setenta anos, destruindo empresas e economias nacionais, como a da Islândia, por exemplo, chegando-se ao risco de levar o mundo a uma nova guerra mundial.
O quarto desastre considerado traduz-se na questão da desigualdade de renda nos EUA. Os estudiosos norte-americanos incluem a desigualdade de renda e a distribuição da riqueza como um desastre que é piorado pela estruturação do sistema político e pelas políticas públicas que ele produz sustentado pela ordem constitucional vigente. Argumenta-se que o sistema político tem se mantido à margem da questão do crescimento da desigualdade e se esforçado na utilização de vetos criados pela Constituição para impedir ações destinadas a aliviar essa tendência, e reações populares como o movimento Occupy Wall Street são considerados como mecanismos partidários de esquerda, mas a classe média e a de rendimento mínimo nesse país nunca foram e nem são de esquerda, mesmo em assuntos econômicos. Nesse sentido, de modo prático, sem ideologia, denuncia-se a estagnação da renda de um trabalhador de classe média nas últimas três décadas do século vinte, graças à influência de grandes corporações para aumentar seus lucros, por exemplo, no mercado de subsídios ao etanol. De outro lado, registram os estudos acadêmicos a queda da influência política das classes de renda mínima sobre o sistema político que não mais responde ao sentimento do público na luta pelo aumento do rendimento mínimo, que, como tema encaminhado aos políticos em Washington, tem sido constantemente procrastinado, ofuscado, impedido ou servido apenas para jogos de cena nas discussões do legislativo sobre o assunto. A desculpa de que muitos vetos constitucionais asseguram a discussão mais adequada de um tema não pode se aplicar à questão da desigualdade de renda mínima, pois esta permanece, em 2014, nos patamares de 2007, enquanto a renda dos dez por cento mais ricos da população cresce constantemente a cada ano. Enfim, os segmentos de classe mais desfavorecidos denunciam que se vive em uma democracia desigual, uma verdadeira oligarquia conduzida pelos mais ricos em seu próprio proveito, e que esta desigualdade aponta o que é problemático com a democracia norte-americana: a ordem constitucional. Em termos comparativos, a Associação Americana de Ciência Política aponta disparidades crescentes de desigualdade de renda entre os EUA e países como o Canadá, a França a Alemanha a Itália e muitos outros países em democracias industrializadas avançadas, pois, enquanto nesses países a renda é muito menos concentrada, da metade dos anos 1970 e até 1998, os mais ricos norte-americanos aumentaram sua renda de duas a três vezes mais do que os mais ricos na Alemanha, na Inglaterra e na França, por exemplo. Temas arriscados, de cunho ideológico, como o imposto sobre a propriedade, impopular entre as classes mais desfavorecidas, nunca são sequer discutidos pelos congressistas, que se utilizam do poder de veto e de manobras legislativas para manter o status quo prejudicial aos mais pobres, sempre se apoiando em conceitos como separação de poderes, federalismo e o poder do Congresso Nacional para estruturar suas próprias operações e decisões.
Em conclusão, o povo norte-americano não se deixou bestializar como nós brasileiros no início da nossa República, e seus acadêmicos apontam que a perda de confiança dos cidadãos nos governantes de seu país teve início há muito tempo, pelo menos desde 1861-1865, quando os brancos sulistas se opuseram ao desmonte da estrutura escravagista no século dezenove e deflagrou-se a carnificina da Guerra Civil entre o norte e o sul dos Estados Unidos, com mais de seiscentos mil mortos em apenas quatro anos de conflito. Por isso mesmo, hoje lutam fortemente, com fundamento no exemplo da Califórnia, pela adoção de mecanismos de democracia direta que suplementem o sistema político e a ultrapassada, para eles, ordem constitucional norte-americana.
E nós, brasileiros, o que temos a dizer sobre nossos desastres políticos, nossa ordem constitucional e nossos mecanismos de democracia direta?
Ora, nós brasileiros estamos imersos em uma terrível embrulhada política que, para utilizar uma invenção nacional, se assemelha a um trepidante enredo de telenovela, graças às emoções causadas por surpresas diárias, por exemplo, com a prisão do próprio carcereiro-condutor das autoridades e celebridades envolvidas no imbróglio, o “japonês da Federal”, cuja máscara foi bastante procurada pelos foliões de rua no tradicional carnaval brasileiro.
Nossos mais recentes e mais importantes desastres políticos tem apelidos carinhosos, traduzem a capacidade humorística do caráter nacional, que perde um amigo mais não perde a piada: o primeiro deles é o “mensalão”, e o segundo, o “petrolão”. Ambos os truques fazem parte de uma antiga trama política para arrecadar recursos financeiros dos cofres públicos, desdobrada em duas ações em curto espaço de tempo, no mesmo governo petista, liderado por Luís Inácio Lula da Silva, fruto da engenhosidade e da pressa dos nossos líderes políticos que, contrariando as reflexões de Max Weber, vivem, a um só tempo, da política e para a política, e que, dessa vez, exageraram na dose, pois desde muito tempo vem assaltando as burras públicas impunemente, em especial da estatal do petróleo, a Petrobrás, a quem já se sugeriu mudar o nome para Petrobrax a troco de um “pixuleco” de apenas R$ 2 milhões, no governo de Fernando Henrique Cardoso.
James Madison, um dos louvados pais fundadores da Constituição norte-americana de 1789, antes de trabalhar na sua construção, refletiu sobre os vícios da jovem política do seu país recém-libertado do jugo inglês, e saiu-se com um texto muito conhecido na academia do Tio Sam: “The vices of the american political system” (Os vícios do sistema político americano). O sistema político brasileiro também tem apresentado muitos vícios, mas o pior deles, sem sombra de dúvida, é o vício que os nossos políticos tem de se apoderarem dos dinheiros arrecadados do cidadão brasileiro. Outro vício político brasileiro que desmoraliza e corrompe a política nacional é o da imunidade parlamentar com direito à prerrogativa de foro.
Dessa vez, o assalto de bilhões de reais ou de dólares às arcas da Petrobrás e de outras organizações estatais foi de tamanha ordem que “botaram água pelo ladrão”, e que ladravazes! , e os políticos responsáveis foram “apanhados com a boca na botija”, e haja botijas! , ensejando a oportunidade de um ativismo judicial que poderá terminar por fazer uma faxina geral para destroçar as quadrilhas políticas no poder a tantas décadas, assim, quem sabe, renovando para melhor os hábitos e costumes políticos em nosso país.
Para que isso aconteça de verdade, no Brasil, a parte não contaminada da política nacional terá que se levantar em um movimento que renove as práticas políticas, eliminando-se do cenário da Praça dos Três Poderes, de uma vez por todas o falido e desmoralizado presidencialismo de coalizão, inclusive aceitando dividir as decisões da política no Legislativo contando com a participação dos cidadãos através da adoção e permanente utilização de mecanismos de democracia direta, como a iniciativa popular, o referendo, o plebiscito e a revogação do mandato representativo.
Ousamos afirmar que sem a adoção de tais mecanismos de democracia direta, qualquer proposta de mudança do modo de fazer política em nosso país que se recuse a incluir a participação popular, se denunciará como continuísmo político oportunista destinado ao fracasso, pois o povo está desiludido e cansado dos jogos políticos que só favorecem os poderosos e os abastados.
Além do uso de tais mecanismos de democracia direta, dentre outras medidas, haverá que se limitar a prerrogativa de foro para autoridades governamentais e parlamentares, prevista na Constituição de 1988, como se faz nos EUA, onde existe uma justiça igual para todos, e como já foi no Brasil de 1834 até 1969, quando deputados e senadores jamais tiveram essa prerrogativa, que protegia apenas a instituição, o cargo da autoridade. Além de se eliminar tão aristocrático mecanismo constitucional, passando todos a serem julgados pelo crime cometido já em primeira instância, vale lembrar que ele é fruto de uma constituinte responsável por uma Carta Magna republicana e apelidada de cidadã.
Outra medida inadiável e de fundamental importância para a construção de um país do futuro, deverá ser a modificação do atual centralismo federalista, deslocando-se uma parte do poder tributário delegado à União para as unidades estaduais e municipais, sem deixar de refazer o atual sistema de imposto de renda sobre a pessoa física, para que o cidadão de renda mínima pague menos imposto que os cidadãos considerados milionários e bilionários. O sistema eleitoral também pede transformações, inclusive do seu atual esquema de financiamento, totalmente dominado por uns poucos poderosos conglomerados, de bancos privados e de empresas do setor da construção civil. O apoio logístico dos marqueteiros políticos que usam a telemática para mentir sobre a realidade nacional, favorecendo políticos desonestos, é outro segmento da política brasileira que deverá ser melhor regulamentado.
Mas será de fundamental importância que se tome o devido cuidado para impedir que os mecanismos de democracia direta se transformem em bandeira exclusiva, e caiam nas mãos dos arautos do esquerdismo infantil que pregam a ascensão de um único partido ou de um único líder populista e a defesa de um projeto único de poder, como foi tentado na prática, sem sucesso, na Venezuela nossa vizinha, e aqui no Brasil, em discurso que não vingou, nos últimos tempos.
Enfim, para concluir tão longa reflexão sobre a política e a constituição, devemos lembrar que a descrença no desempenho dos políticos e as manobras para mudar os textos constitucionais estão presentes no mundo inteiro, em todos os tempos de sua quinhentista existência, pois até Charles de Gaulle, um herói do mundo e da França contemporânea, assim agiu quando inventou um parlamentarismo semipresidencialista que a cultura política da terra de Montesquieu apoiou e continua em pleno funcionamento.
Faz-se urgente que reinventemos a política em nosso conturbado país do futuro que nunca chega, e nossa esperança está entregue nas mãos dos políticos que podem ajudar nessa inadiável transformação, porque, se as relações políticas que vivenciamos no Brasil apontam uma democracia decadente, e como ensinou Karl Marx, na 11ª tese dirigida a Ludwig Feuerbach, elas refletem um estado de coisas que deve ser abandonado, superado, transformado, para que a democracia renasça, antes que o povo decida agir por conta própria e, mais uma vez, aventureiros disso saibam tirar proveito.
José Everaldo Ramalho, 76, graduado em Direito, tem especialização em Parlamento e Direito e em Ciência Política, foi CNE na Comissão do Mercosul e Secretário Parlamentar na Câmara dos Deputados, em Brasília, por duas décadas, além de servidor público concursado, por 35 anos, no poder Executivo.
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